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domingo, 7 de fevereiro de 2010

Euclides por Silvio Romero


O BRASIL SOCIAL DE EUCLIDES DA CUNHA, por Silvio Romero

Existem obras que fazem hoje parte do tesouro intelectual da nação, que lhe germinaram na alma, abrindo-lhe novas e mais rasgadas perspectivas, que se não podem desfolhar ao vento, ao gosto das folhas mirradas, imprestáveis. Os "Dias e Noites", as "Espumas Flutuantes", "Mocidade e Tristeza", "Visões de Hoje", "O Matuto", "O Lourenço", "Os Estudos Alemães", "Os Menores e Loucos", "Os Estudos de Direito", "A Propedêutica Jurídica", "Ensaios de Crítica", "O Pan-Americanismo", "O Direito da Família", "O das Sucessões", "Princípios de Direito Internacional Privado", "A Nova Escola Penal", e cem outros não se deixam sufocar pelo negativismo gamenho dos conferencistas da última hora. Não são da alçada dos que se prezam de saber colocar pronomes, mas não sabem colocar idéias... Não entram na tarefa dos que pensam que tudo está feito, todos os brilhos do estilo conseguidos, todos os meandros da ciência desvendados, todos os degraus da glória vencidos quando se teve a ventura de, tratando de coisas do entendimento, achar que se deve dizer "despercebido" em vez de "desapercebido", formas ambas corretas, "merece contestado" em lugar de "merece ser contestado", duas frases tão certas uma quanto outra. Com espíritos, cujo horizonte mental se praz em apertar-se tão singularmente, em cujo céu do pensamento fulgem apenas esses vagalumes em vez dos grandes astros aclaradores dos magnos problemas, não admira a cegueira com que negam os títulos, por exemplo, a um dos mais conspícuos chefes intelectuais da nação, o autor das "Questões Vigentes de Filosofia e Direito".
Proliferam impertinências, insinuadas nas cabeças de homens como José Maria Mérou, para que os esconjuros negativistas passem a fronteira e se espalhem pelo continente. Percorre-se toda a história de quatrocentos anos das lides espirituais brasileiras e não se encontra, em tempo algum, uma tal e tão prolongada sanha de desprestígio e denegrimento numa gente, que tem, aliás, tão fácil o entusiasmo e sabe com tanto jeito balouçar
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os turíbulos diante de uma série quase infindável de manipanços de toda casta.
Escusado é relembrar as várias formas revestidas pelo demônio da demolição e as capas diversas que tem sido forçado a deixar no meio da rua.
O bioco faz hoje uma confissão e julga-se com ela exonerado de culpa e quite com a justiça e a verdade.
O homem não valia nada; mas, oh! singular antinomia mais embrulhada do que as de Kant!... "teve a vantagem de formar grandes discípulos e preclaros admiradores..."
Como se um medíocre pudesse fecundar alma, suscitar talentos, mover e pôr a postos os contendores da idéia!...
É uma crítica que evidentemente desnorteia e vai, de queda em queda, de concessão em concessão, até negar-se a si mesma.
O grande brado final é agora: "a originalidade..." mostrai-nos as "novas doutrinas", as originais "descobertas" do proclamado Mestre...
Pode-se responder com ele mesmo, defendendo um companheiro, a quem, num passo semelhante, pedia a mesma fanfarronice crítica que indicasse a "originalidade" produzida em certo livro:

<E que vem a ser, em obras de história e crítica literária, jurídica ou filosófica, a necessidade de descrever experiências próprias?
Pergunta qual é a originalidade que se encontra no livro questionado e não presente que se lhe possa responder: o livro mesmo, seu método, sua tendência. Já isto vale alguma coisa, no ponto de vista elevado da crítica atual do mundo culto; no que, porém, particularmente nos toca, nos estreitos limites de nosso horizonte, vale muito, vale tudo. Não é trabalho de pouca monta, que demande mais o talento da paciência, do que a paciência do talento, escavar e revolver um terreno estéril, tido geralmente na conta de aurífero, para dizer-nos enfim: não existe ouro; é apenas uma camada de greda...
'Originalidade!...' É pedir demasiado. O censor, por certo, não entrou bem no fundo deste conceito. O original em uma criação do pensamento, afirma Hermann Cohen, limita-se a um curto passo que muitas vezes somente pela sua preponderância no andar das idéias, ou pela inesperada direção que toma, atinge a força de reformar, ao largo e ao longo, o domínio do saber. Mas, mesmo assim, quantos são capazes de sair fora de casa, e aventurar esse curto passo além do terreno conhecido? Ainda hoje é verdadeiro o que disse o grande Börne: 'Assim como entre um milhão de homens existem ao muito, mil pensadores, também entre mil pensadores existe apenas um original'. Não é, portanto, no sentir dos homens competentes, tão importante, como parece aos olhos mal educados de levianos e impertinentes aristarcos, para tomar as dimensões de um autor, principalmente de crítica filosófica, ou outra qualquer, a medida retórica da 'eurésis' ou da 'inventio', a medida da originalidade...


Eis aí; nada mais adequado ao caso, nada que melhor caracterize a hilariante atitude dos que articulam censuras, irmãs gêmeas da vacuidade. Do nosso compatrício pode-se afirmar exatamente o mesmo: sua originalidade está em sua obra tomada em conjunto, na ação, nas tendências que despertou, no influxo por ela produzido.
Só pelo mais irracional capricho ou pela mais inexplicável ausência de senso histórico, é possível negar valor e eficácia no Brasil a esses movimentos dele partidos do "integralismo social" em poesia, do "germanismo" em literatura, do "monismo evolucionista" em filosofia e direito.
Uma consideração, que não tem sido assaz ponderada, por si só suficiente para aclarar o ponto, destacando a figura do genial agitador, é que os grupos que constituíram as três fases da Escola do Recife, de seu início a seu fim, de 62 a 89, a fase poética, a crítico-filosófica, a jurídica, não foram os mesmos; sucederam-se, havendo, entretanto, um fator permanente, que presidiu os três períodos e esse era exatamente o autor dos "Dias e noites", dos "Estudos alemães", dos "Estudos de Direito".
Quantos no Brasil se poderão gabar, com verdade e justiça, de um tão harmonioso e orgânico desdobrar de sua ação intelectual?
É preciso ter vivido no Rio de Janeiro, espreitando, mesmo de longe, o círculo dos estudantes, dos professores, dos jornalistas, dos literatos e políticos de toda ordem, para se haver sentido a temperatura espiritual do tempo, nos anos de 1862 a 68, exatamente o período em que se agitava a Escola do Recife no seu "Sturm und Drang", e preparava o início da fase crítica.
A poesia movia-se mofina, pálida e tísica a tossir umas cansadas mágoas de monótono realejar. "A minh'alma é triste como a rola aflita" e o "Se eu morresse amanhã" andavam nos lábios de todas as belas, e o "Qual quebra as vagas o mar" ressoava dos peitos dos namorados, sonhadores e lamartinescos.
O burguês retrucava com "Waterloo, Waterloo!... lição sublime..." e o rapazio patrioteiro com a "Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá..." O nativista atento, a fantasiar caboclismos de opereta, desfiava como palavras duma ladainha o "Oh! guerreiros da taba sagrada, oh! guerreiros da tribo tupi..."
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Alguns cismadores de tristezas indefinidas, enevoadas, dessas que cingem os Hamlets de chapéus descabidos e olhares chumbados nos luares místicos, divisando monjas em cada canto dos céus, seguiam, monologando o "Quem passou pela vida em branca nuvem e em plácido regaço adormeceu..." Como diversão, meio brejeira, cheia dos eflúvios das confidências romantizadas de um mundo feérico, no qual a banalidade sabe falar em rimas doces, modulavam mocinhas pálidas, num devanear de descuidosas íncolas de sonhos e miragens, o "Lembras-te, Iná? Belo e mago, da névoa por entre o manto, erguia-se ao longe o canto dos pescadores do lago..." numa terra que não tem névoas nem pescadores de lagos... Ao que a caixeirada sensata, fazendo frases à moda geral, retrucava com a "Simpatia, meu anjinho, é o canto do passarinho..."
E os pianos roufenhavam por todos os lados o recitativo que acabava de ser introduzido por Furtado Coelho: "Era no outono, quando a imagem tua..."
Asfixiava!...
O romance e o drama moviam-se entre a erótica carioca, meio burguesa, meio fantástica, engalanada de lentejoulas baratas e penas de pavão dos heróis e heroínas, de Macedo, de um lado, e, de outro, os caboclos hiperidealistas, mestres em platonismo alexandrino, e a avultada galeria de belas raparigas histéricas, nevropatas, de Alencar.
Em filosofia ainda Victor Cousin era "esse Deus" que, na frase declamatória do retórico Montealverne, "tinha trazido a ordem ao caos dos sistemas".
Como supremo esforço do gênio nacional nesse gênero de assuntos recordavam alguns a doutrina de Magalhães da possibilidade de não ter o universo existência real, não passando de um sonho em nós suscitado pela inteligência divina, na qual o vemos, pela mesma forma que o magnetizado vê as idéias na mente do magnetizador...
Era o tempo em que o Dr. Dias da Cruz e o Padre Patrício Muniz discutiam com toda a seriedade a "teoria da afirmação pura". Um pavor...
A inteligência nacional andava encurralada num círculo de romanticismo caduco e de metafisismo banal, envoltos ambos numas retorices sovadas, balofas, inanes, em que velhas frases eram glorificadas e erigidas à cultura de teses científicas, de pilastras eternas do verdadeiro. Em política o Visconde do Uruguai e o Conselheiro Zacarias de Góis esbofavam-se por estabelecer a exata doutrina acerca "da natureza e limites do poder moderador".
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Nunca o bizantinismo tinha alcançado mais nítido renascimento depois do século XV. Era o justo "pendant" da disputa da "teoria da afirmação pura".
Em crítica literária o Cônego Dr. Fernandes Pinheiro ensinava com todo sério: "Preferiu Barros a tuba épica ao buril da história, 'e assim como precedera Heródoto a Homero', publicou ele a sua primeira década no mesmo ano em que Camões partia para a Índia". E interpretava "tinherabos", "non tinherabos" por "tinhe rabos", "non tinhe-rabos..."
Que tal! Coisas professadas no colégio de Pedro II e repetidas diante do Imperador...
Em crítica de religião e de direito... nem é bom falar.
Taparelli, Ventura de Raulica e o Padre Gaume eram a última palavra.
Foi nestas condições que um ar fresco de reforma e renovamento, que coincidia, em Paris, com a decadência crescente do despotismo napoleônico e a ação inovadora dos mais fecundos escritos de Vacherot, Scherer, Taine, Renan, passou os mares e tocou em Pernambuco, primeiro porto nacional, destacado para o Oriente, esperando, anelante, as novas do velho mundo. Tudo começava a revestir-se de novos rebentos e novas folhagens.
Até os velhos chefes românticos, os Hugos, os Quinets, os Michelets, sempre sequiosos de liberdade e cheios de ardor pelo progresso, modificaram as tardas liras, meteram-lhes cordas novas em que deviam soar as aspirações do povo, as dores sociais, as mágoas da multidão.
A Polônia estorcia-se sob a pata do cossaco, o México sob as carabinas de Bazaine, os Estados Unidos, com os Grants e os Lincolns, feriam tremendas batalhas para libertar alguns milhões de escravos.
A Alemanha preparava em Sadowa a sua transformação. Até o Brasil se começava a mover e embarcava na aventura das lutas com o Uruguai e o Paraguai.
Enquanto no Rio de Janeiro os espíritos se diluíam nas divagações das "Cartas de Erasmo", a mocidade do Recife fremia sob o impulso das tentações republicanas, democráticas, abolicionistas, patrióticas. A expressão desse aspirar tumultuário e intenso era natural que, em almas juvenis, se manifestasse pela poesia e mais natural ainda era que ela tomasse o tom e a coloração dos grandes mestres que no tempo falavam mais alto aos instintos generosos do coração francês, Victor Hugo e Edgar Quinet.
Eis a razão do que se veio a chamar o "condoreirismo", o qual deve ser apreciado no sentido íntimo das idéias que espalhou, dos sentimentos a que deu expressão, do ardente lirismo que
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pôs em voga. Castro Alves foi o apóstolo andante das novas intuições.
Na Bahia, Rio e São Paulo apareceu sucessivamente como alguma coisa de inédito.
A poesia mudou logo de tom em toda a linha. Deixados os primeiros exageros de forma, dali tinham de partir as escolas naturalista, a científica, a parnasiana, que se sucederam nos últimos tempos. Mas, sói quase sempre acontecer, os bem-aventurados das margens de Guanabara esqueceram facilmente o ponto de partida, o centro provinciano, onde as primeiras idéias tiveram a ousadia de brotar.
E agora exigem-nos títulos de originalidade! É curioso! O que se fez em crítica e história literária, em filosofia geral e do direito, em folclore e história nacional, em critica religiosa o política, em questões sociais, de 1868 em diante, época em que Castro Alves deixou o Recife, lides portanto, em que não tomou parte e nem poderia tomar, porque não estava preparado para elas, sobreleva de muito a ação no mero terreno da poesia, em que ele teve parte conspícua.
Indicar, mesmo em resumo, o punhado de idéias e doutrinas lançadas então na leiva fértil das almas entusiastas e nelas floresceram e vieram espalhar dourados frutos por todo o país, não caberia, sem impertinência, nesta ocasião e lugar.
Em ensejo proximamente oportuno será debatido em toda a extensão, com todos os ardores da refrega.
Baste, por hoje, avançar que me não contenta a afirmativa, já feita, da originalidade, por assim dizer, genérica da obra e da ação do crítico das "Questões Vigentes", tomada em seu conjunto.
Releva resolutamente responder àqueles que o acusam e amesquinham, sem o haver jamais evidentemente lido, a esses que nunca se lembraram de exigir o "brevet d'invention" das originalidades doutros escritores, vivos ou mortos, que desassisada é a teima de pretender transformar um crítico em o que os franceses chamam, com evidente espírito de mofa, "un theoriste, un faiseur de système..." E, todavia, tantas são as idéias novas, os pontos de vista originais que se nos deparam nos escritos do grande ensaísta brasileiro, que ouso chamar raríssimo o trabalho seu em que não surjam e facilmente possam ser notados pelos olhares competentes.
Destarte, novidades escreveu em todos os ramos da crítica de que se ocupou: de literatura, de direito, de filosofia, de política, de religião, de arte musical. Bastante seria para destacar esse espírito inovador, notar as análises que fez dos mais variados escritores, S. Tomás, Kant, Jouffroy, Levêque, Francisco Huet, Vacherot, Strauss, Jellinek
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Jules Simon, Auerbach, Guiau, G. Le Bon, Carrara, Hartmann, Gneist, lhering, Alexandre Herculano, Zacarias de Góis, Tavares Bastos, Magalhães, Soriano de Sousa, Oliveira Martins... Ou apreciar o "humour" com que se insurgiu contra as parêmias consagradas, tidas geralmente por verdades inconcussas, moedas de ouro de lei do mais elevado quilate, que não passavam, a seus olhos perspícuos, de solenes tolices: "liberdade, igualdade, fraternidade, idéia perseguida, idéia propagada, benigna amplianda, odiosa restringenda, o estilo é o homem, o direito não deve ser casuístico..."
Ou meditar nos vivos quadros que traçou do Brasil literário, municipal, cortesão, político, religioso e social.
Podem e devem, entretanto, ser desafiados os aristarcos a percorrer os domínios prediletos do criticar do malfadado escritor.
Na crítica literária, se lhes deparará o conceito mesmo de literatura, corrigindo e alargando a definição do dinamarquês George Brandes; as notações que faz da índole e natureza do estilo, da poesia, da confusão desta com o senso religioso em determinados casos; a pintura que traça de Shakespeare, do pensador em V. Hugo, de Herculano estilista e crítico, de alguns vultos da literatura clássica alemã; o paralelo entre Feuerbach e Strauss e a determinação do que chama o momento trágico na vida deste último...
Em crítica jurídica, várias idéias acerca de tentativa, mandato criminal, co-delinqüência, direito autoral; o conceito mesmo que formava do direito, ampliando a definição de Ihering, ou como a disciplina das forças sociais, o processo de adaptação das ações humanas à ordem pública, ao bem-estar da comunhão política, ao desenvolvimento geral da sociedade.
Por igual a análise da teoria da imputação no antigo código criminal brasileiro. Releva sobretudo salientar o conceito do criminoso como um especial tipo disteleológico, que sai fora da finalidade social, verdadeiro caso de teratologia, que, entretanto, não se deixa explicar pelos fatores apregoados pelas escolas já então em luta, ainda que sejam todos reunidos, os "naturais" (escola antropológica), os "sociais" (escola socialista), os do "livre arbítrio" (escola clássica), fatores estes, que, multiplicados entre si, segundo a frase do autor, não chegam para esgotar a série, porque entre eles há termos médios, cujo valor não têm força de determinar.
Doutrina esta expendida logo que apareceram os primeiros escritos de Lombroso e de seu opositor Tarde, atirando a barra adiante deles.
Claro é que a "terza scuola" teve em nosso criminalista um genuíno precursor, sendo que os conceitos do crime e do crimi-
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noso são no escritor brasileiro mais largos do que os de von Lisst, o famoso jurista alemão.
Nova também foi a doutrina por ele ensinada dos delitos comissivos, praticados, entretanto, omissivamente. Novidades para quem anda sequioso atrás delas aparecem na análise do art. 10 do aludido Código, peculiarmente no que diz respeito a mulheres e menores campônios delinqüentes.
E como esquecer as belas e novas coisas acrescentadas à lição de Ihering contra a velha teoria do direito natural em prol da doutrina do puro culturanismo, e o que expendeu acerca da morfologia, fisiologia e psicologia nos fenômenos jurídicos?
Em crítica filosófica, além de ter sido ele quem iniciou a campanha seguida e vigorosa contra o extenuado espiritualismo eclético de Vitor Cousin e consócios, ensinando sucessivamente, como quem reformava seu próprio pensamento diante do público, o naturalismo idealista de Vacherot, o positivismo de Comte, o criticismo agnóstico de Scherer e Renan, o pessimismo de Schopenhauer e Hartmann, o monismo de Haeckel e Noiré, parando definitivamente neste último, cumpre advertir, aos conhecedores se deparam muitos casos originais, espalhados em seus escritos do gênero.
Deste número é o que deixou dito, contra Jouffroy, acerca do papel da imaginação do fato da consciência, e, contra Vacherot, do papel da memória na mesma consciência, até em se tratando de idéias, atos, paixões e sentimentos que formam, segundo a pretensão desse filósofo, o fundo e essência da alma humana. O que escreveu do nenhum valor da achega dos poetas, dramaturgos, romancistas, moralistas em psicologia, da impossibilidade desta traçar a história de suas principais descobertas de caráter subjetivo e fazer previsões exatas nos seus domínios.
A réplica ao aludido Vacherot, quando ensina que o espírito humano se observa de duas maneiras, na parte individual e na parte geral de seu ser. A análise fina que fez por quatro vezes diversas da filosofia de Kant, principalmente naquela em que mostra que o pensador de Königsberg inutilizou para todo sempre o chamado "racionalismo", de qualquer natureza e forma, não bastando afirmar, portanto, que demonstrara a impossibilidade da metafísica como ciência.
Várias das ponderações que aduziu contra a sociologia como corpo científico já organizado. O modo como explicou a falta de homocronismo entre a evolução intelectual e emocional do homem.
Em critica política, a análise do parlamentarismo brasileiro, isto há trinta e cinco anos, em confronto com o britânico. A página profunda em que delineia o que deveria ser o governo e
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a organização política do Brasil, como um produto de sua própria história e não uma cópia do Estado inglês ou do americano.
A nota que lança de passagem sobre o fato singularíssimo de não se haver o povo brasileira constituído por si próprio, senão por um poder estranho, de tal arte que, como atividade, como força, como espírito, ele não se deu a si mesmo os órgãos e funções de sua vida social, sendo-lhe tudo outorgado, como a um autômato imenso, que devesse bulir e mexer-se por virtude de quem tivesse aquela mágica e suprema chave de toda a organização política, segundo a frase do texto constitucional, metáfora tosca e fútil, que, entretanto, se converteu em princípio diretor dos destinos da nação!...

O que aventa sobre futuro realmente induzido ou simplesmente imaginado em política. Como explica a razão da inexistência de uma intensa vida municipal no Brasil em face de um provincialismo assaz vivaz. A página em que descarna o sistema representativo nos Estados modernos como a estranha organização da desconfiança. Os dizeres humorísticos contra a parêmia de Thiers: "o rei reina e não governa".
A censura que faz a um erro muito corrente, repetido por Tavares Bastos, do suposto caráter federativo do Estado inglês, cumprindo não esquecer a nota de ser em geral a forma de governo uma questão mais de estética do que de ética política.
Em critica religiosa histórica, as considerações, contra Herculano, sobre o caráter intrínseco dos males que atacam a Igreja, a suposta imutabilidade antiga da dogmática e pretensas inovações modernas, alegadas pelo historiador português, e, portanto, sobre o sentido e caráter da evolução no seio do catolicismo.
Em crítica religiosa bíblica, entre outras idéias, as que expendeu do papel de Samuel na instituição da realeza em Israel e a explicação que sugere da oposição que o texto sagrado lhe atribui à vontade do povo que lhe pedia um rei.
As observações que ajunta à crítica de Michel Nicalas a propósito das duas narrativas que o "Gênese" traz da criação.
A contestação que opõe ao teólogo francês no que se refere à critica deste a Ewald sobre as origens do "Pentateuco". Na intervenção e corrigenda que faz de parte a parte no debate havido entre Vacherot e o Padre Gratry acerca da narrativa evangélica da paixão de Jesus.
Como estas, outras idéias jogadas no correr dos escritos que intitulou "Notas sobre a Crítica Religiosa", "A Irreligião do Futuro", "A História do Povo de Israel e o Sr. Oliveira Martins".
Finalmente, em crítica musical, além de repelir o velho sestro, nessa esfera reinante, de tomar meras metáforas por aná-
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lise, substituindo-as pelo espírito filosófico-histórico, teve ensejo de, a propósito de músicos, como Bellini, Carlos Gomes, Meyerbeer, Wagner, e críticos como Hanslick e Escragnolle Taunay, espalhar várias pérolas de novo lavor. Bastante é lembrar a bela página em que, a propósito da qualidade representativa ou não da música, se encontra indicada a teoria da "associação dos sentimentos" ou das "emoções" consensuais.
Só isto era suficiente para lhe conferir a láurea de pensador original. Oh! não vos poder convidar para, acompanhados pela musa da simpatia, esquecidos os esconjures dos negativistas que apostaram em tapar os olhos, percorrerdes alguns dos mais sugestivos ensaios do seleto escritor! Se os seus desavisados censores tivessem uma visão clara da evolução total do espírito brasileiro na poesia, uma visão clara da evolução total do espírito brasileiro em religião, filosofia, política, direito e crítica literária, deveriam saber qual o estado de todas estas coisas nesta terra, em 1862, quando o grande pensador do Norte iniciou no Recife o seu poetar, e em 1868, quando deu começo à sua evolução critica. Já se viu a detestável posição dessas coisas no período aludido. Urge mostrar agora a mutação. A fase poética, com ter grande valor, não tem a importância e o alcance da fase seguinte.
O decênio que vai de 1868 a 1878 é o mais notável de quantos no século XIX constituíram a nossa labuta espiritual. Quem não viveu nesse tempo não conhece por ter sentido diretamente em si as mais fundas comoções da alma nacional. Até 1868 o catolicismo reinante não tinha sofrido nestas plagas o mais leve abalo; a filosofia espiritualista, católica e eclética a mais insignificante oposição; a autoridade das instituições monárquicas o menor ataque sério por qualquer classe do povo; a instituição servil e os direitos tradicionais do aristocratismo prático dos grandes proprietários a mais indireta opugnação; o romantismo, com seus doces, enganosos e encantadores cismares, a mais apagada desavença reatora. Tudo tinha adormecido à sombra do manto do príncipe ilustre que havia acabado com o caudilhismo nas províncias e na América do Sul e preparado a engrenagem da peça política de centralização mais coesa que já uma vez houve na história em um grande país.
De repente, por um movimento subterrâneo, que vinha de longe, a instabilidade de todas as coisas se mostrou e o sofisma do império apareceu em toda a sua nudez. A guerra do Paraguai estava a mostrar a todas as vistas os imensos defeitos de nossa organização militar e o acanhado de nossos progressos sociais, desvendando repugnantemente a chaga da escravidão; e então a questão dos cativos se agita e logo após é seguida da questão
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religiosa; tudo se põe em discussão: eleições: o aparelho sofístico das eleições, o sistema de arroxo das instituições policiais e da magistratura e inúmeros problemas econômicos; o partido liberal, expelido do poder, comove-se desusadamente e lança aos quatro ventos um programa de extrema democracia, quase um verdadeiro socialismo; o partido republicano se organiza e inicia urna propaganda tenaz que nada faria parar.
Na política é um mundo inteiro que vacila. Nas regiões do pensamento teórico o travamento da peleja foi ainda mais formidável, porque o atraso era horroroso.
Um bando de idéias novas esvoaçou sobre nós de todos os pontos do horizonte. Hoje, depois de mais de trinta anos, hoje, são elas correntes e andam por todas as cabeças, não têm mais o sabor da novidade, nem lembram mais as feridas que, para as espalhar, sofremos os combatentes do grande decênio. Positivismo, evolucionismo, darwinismo, crítica religiosa, naturalismo, cientificismo na poesia e no romance, folclore, novos processos de crítica e de história literária, transformação da intuição do direito e da política, tudo então se agitou e o brado de alarma partiu da Escola do Recife. O escritor dos "Menores e Loucos" foi o mais esforçado combatente, com o senso de visão rápida de que era dotado. Por que contestar o seu merecimento? Por que amesquinhar o seu esforço?
Vós, Sr. Dr. Euclides da Cunha, tendes, felizmente, ficado e ficareis a coberto dessas ásperas contingências de precisar defender uma coisa que, no fundo, não vale dois minutos de luta neste canto da terra: o renome, a reputação literária. De um ímpeto, adejasses por cima dos mais altos píncaros, onde flutuam aos ventos as flâmulas dos entusiasmos e das glorificações brasileiras.
Lá chegasses e lá deveis ficar, porque não vos fizeram favor.
Fostes levado pelo mérito inegável de um livro que é urna das obras-primas da mentalidade nacional. Mas, cumpre dizer-vos, nada deveis à crítica indígena; porque ela não vos compreendeu cabalmente. Tomou o vosso livro por um produto meramente literário, como as dezenas de tantos outros que se afez a manusear.
Viu nele apenas as cintilações do estilo, os dourados da forma, e, quando muito, considerou-o ao demais como uma espécie de panfleto de oposição política que dizia da organização do nosso exército, de nossas coisas militares umas tantas verdades que ela, a crítica, não se atrevia a dizer. Daí os aplausos.
Não era desses que precisáveis.
Vosso livro não é um produto de literatura fácil, ou de politiquismos irrequietos. É um sério e fundo estudo social de nosso povo que tem sido o objeto de vossas constantes pesquisas, de vossas leituras, de vossas observações diretas, de vossas viagens, de vossas meditações de toda a hora. Começastes por querer surpreendê-lo na índole, na constituição mais íntima, na essência intrínseca, nessa espécie de "rendez-vous" que ele se deu a si próprio nos campos do Paraguai.
Achastes, talvez, desmesurado o plano, e recuasses até agora. Creio que o quisesses pegar em flagrante nas cruas lutas de "maragatos" e castilhistas do Rio Grande do Sul, ou nas curiosas aventuras da Revolta da Armada.
Tem sido a iniludível necessidade de dividir o assunto, agigantadamente extenso para uma só tela. Andais tentado hoje pelo Acre e pela Amazônia, que vos consomem os lazeres; porque vós tornais ao sério vossos estudos e tendes o pundonor dos escritores que forcejam por ser verídicos e escrupulosamente exatos.
Que a musa da felicidade, que deve ser o anjo da guarda dos gênios empreendedores, vos ampare e abrigue sob largas asas e propicie ao Brasil o ensejo de receber de vossas mãos outros livros como esse de "Os Sertões".
Nele a narrativa, que ocorre na segunda parte da campanha de Canudos, é uma simples exemplificação de índole subalterna. O nervo do livro, seu fim, seu alvo, seu valor, estão na descritiva do caráter das populações sertanejas de um dos mais curiosos trechos do Brasil.
Para os que as conhecem, foi inestimável serviço ver ligados, presos, articulados, os traços diversos, esparsos na imaginação e na memória. Tomaram eles feição sob a vara mágica e evocativa do poderoso estilo do observador.
Para os que não as conhecem, e é este o caso de todos os deliqüescentes que enfiam frases no Rio de Janeiro, foi como a revelação de um mundo longínquo, afastado, estranho, alheio a tudo o que os toca, tudo em que pensam, tudo de que fabulam, em suas irisadas vacuidades de imortalizados em vida... Era como se tratasse de populações da Mongólia, do Turquestão ou do Saara...
Tanto é profundo o inconsciente desconhecimento de nós mesmos!
Tínheis o espírito cheio do ensino do divino Tomás Buckle de quem me prezo de haver sido o primeiro que lhe analisou as doutrinas em língua portuguesa, nos dois mundos, quando estudastes o vosso assunto e escrevestes o vosso livro.
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Usastes de seus processos, que são fundamentalmente os mesmos popularizados por Hipólito Taine e diluídos na prosa docemente ondulosa de Ernesto Renan.
Estudastes a terra, sua organização, seus aspectos, sua flora, seu clima, suas falhas, seus recursos, e poderia dizer, seus males, seus padecimentos, e tomastes nas mãos a mor porção dos fios invisíveis com que ela prende o homem e o faz à sua imagem e semelhança.
Surpreendeis-la na lenta e segura laboração das almas e dos caracteres.
De vosso livro deve-se tirar, pois, uma lição de política, de educação demográfica, de transformação econômica, de remodelamento social, de que depende o futuro daquelas populações e com elas o dos doze milhões de brasileiros que de norte a sul ocupam o corpo central do nosso país e constituem o braço e o coração do Brasil.
Dir-vo-lo-ei como; mas antes deixai-me que exerça livremente o meu direito de admirar.
Também sei queimar gostosamente bagas de incenso, quando o altar não está vazio e nele existe realmente o que se deva venerar. Para tanto, no caso, não hei mister improvisar; basta-me abrir o vosso livro e ler nele como se lê nos "Missais" nas cerimônias do culto.
Vós sabeis retratar ao vivo a natureza física, dando intensidade às notas, sem prejudicar a veracidade dos fatos, a qualidade dos fenômenos.
É o grande escolho da arte da descritiva: exatidão e relevo, naturalismo e brilho, consistência e colorido, poesia e verdade.
Em vosso livro multiplicam-se as páginas comprovadoras do asserto.
Descreveis a terra, os ares, os horizontes, a flora, as secas, as trovoadas, os bons dias das renascenças hibernais, as labutações dos homens, as vaquejadas, as partilhas, as festas das sazões propícias, os sofrimentos tragicamente heróicos dos grandes êxodos inevitáveis e descreveis os costumes, as crenças, as almas, em suma, nas suas mais recônditas fibras.
As dez ou doze páginas consagradas à flora não vejo que encontrem superiores ou sequer iguais em nossa língua.
Pequenos trechos esplêndidos no correr da descritiva:


<as atinjam de chofre as quedas de temperatura, tendas invisíveis e encantadoras, resguardando-as...
Estes vegetais estranhos, quando ablaquecidos em roda, mostram raízes que se entranham a desproporcionada profundura. Não há desenraiza-los; o eixo descendente aumenta-lhes maior à medida que se escava. Por fim se nota que ele se vai repartindo em divisões dicotômicas; progride pela terra dentro até a um caule único e vigoroso, embaixo.
Não são raízes, são galhos. E os pequeninos arbúsculos, esparsos ou repontando em tufos, abrandendo às vezes largas áreas, uma área única e enorme, inteiramente soterrada...
Têm o mesmo caráter os juazeiros, que raro perdem as folhas de um verde intenso, adrede modeladas às reações vigorosas da luz.
Sucedem-se meses e anos ardentes; empobrece-se inteiramente o solo esbraseado. Mas nessas quadras cruéis, em que as soalheiras se agravam, às vezes, com os incêndios espontaneamente ateados pelas ventanias, atritando rijamente os galhos secos e estonados, sobre o depauperamento geral da vida em roda agitam as ramagens virentes alheios às estações, floridos sempre, salpintando o deserto com as flores cor de ouro, álacres, esbatidas no pardo dos restolhos, à maneira de oásis verdejantes e festivos.
A dureza dos elementos cresce, entretanto, em certas quadras ao ponto de os desnudar: é que se entrerroaram há muito os fundos das cacimbas e os leitos endurecidos das ipueiras mostram, feito enormes carimbos, os rastos velhos das boiadas, e o sertão de todo se impropriou à vida.
Então, sobre a natureza morta, apenas se alteiam os sereus esguios e silentes, aprumando os caules circulares repartidos em colunas poliédricas e uniformes, na simetria impecável de enormes candelabros. E avultando, ao descer das tardes breves, sobre aqueles ermos, quando os abotoam grandes frutos vermelhos destacando-se, nítidos, à meia luz dos crepúsculos, dão a ilusão emocionante de círios enormes, fincados a esmo no solo, espalhados pelas chapadas, e acesos...
Os mandacarus, atingindo notável altura, raro aparecendo em grupos, assomando isolados acima da vegetação caótica, são novidade atraente a princípio. Atuam pelo contraste. Aprumam-se tesos, triunfalmente, enquanto por toda a banda a flora a deprime. O olhar perturbado pelo acomodar-se à contemplação penosa dos acervos de esgalhos estorcidos, descansa e retifica-se percorrendo os seus caules direitos e corretos.
No fim de algum tempo, porém, são uma obsessão acabrunhadora. Gravam em tudo monotonia irritante, sucedendo-se constantes, uniformes, idênticos todos, todos do mesmo porte, igualmente afastados, distribuídos com uma ordem singular pelo deserto...
Têm como sócios inseparáveis neste 'habitat', que as próprias orquídeas evitam, os 'cabeças-de-frade', deselegantes e monstruosos melocactos de forma elipsoidal acanalada de gomos espinescentes, convergindo-lhes no vértice superior formado por uma flor única, intensamente rubra.
Aparecem de modo inexplicável, sobre a pedra nua, dando, realmente, no tamanho, na conformação, no modo por que se espalham, a imagem singular de cabeças decepadas e sanguinolentas jogadas por ali a esmo, numa desordem trágica...
[p. 167]
E a vasta família, revestindo todos os aspectos, decai, a pouco e pouco, até aos quipás reptantes, espinhosos, humílimos, trançados sobre a terra à maneira de espartos de um capacho dilacerador... Aqui, ali, outras modalidades: as palmatórias do inferno, opúncias de palmas diminutas, diabolicamente eriçadas de espinhos, com o vivo carmim das cochonilhas que alimentam; orladas de flores rutilantes, quebrando alacremente a tristeza solene das paisagens...
Vingando um cômoro qualquer, postas em torno as vistas, perturba-as o mesmo cenário desolador: a vegetação doente, informe, exausta, num espasmo doloroso...
Compreende-se a verdade da frase paradoxal de St. Hilaire: há ali a melancolia do inverno com um sol ardente e ardores de verão.
A luz crua dos dias longos flameja sobre a terra imóvel e não a anima. Reverberam as infiltrações de quartzo pelos cerros calcáreos, desordenadamente esparsos pelos ermos, num alvejar de banquises, e oscilando à ponta dos ramos secos das árvores inteiriçadas, dependuram-se as ilândsias alvacentas, lembrando flocos esgarçados, de neve, dando ao conjunto o aspecto de uma paisagem glacial, cle vegetação hibernante, nos gelos...>>


Não é, todavia, a natureza física que tem o condão de arrancar à paleta do escritor imagens, que são fotografias.
Os tipos étnicos, os caracteres das coletividades, as índoles individuais, moldadas no cadinho dos vícios ambientes, os vincos deixados nas almas pela atmosfera social fazem-se reproduzir com firmeza e são, a meus olhos, mais meritórios; porque mais difíceis de concretizar.
Tal é o estado de difusão da matéria-prima empregada.
Mas o escritor sai galhardamente da empresa.
Já viram coisas esplêndidas. Ouçam agora coisas magníficas. Eis o sertanejo, o tipo aparentemente mole, preguiçoso, nas horas da súbita transfiguração, imposta pela necessidade:


<A sua compleição robusta ostenta-se, nesta ocasião, em toda a plenitude.
Como que é o cavaleiro forte que empresta vigor ao cavalo pequenino e frágil, sustendo-o nas rédeas improvisadas de caruá, suspendendo-o nas esporas, arrojando-o na carreira estribando curto, pernas encolhidas, joelhos fincados para a frente, torso colado no arção, escanchado no rastro do novilho esquivo: aqui curvando-se agilíssimo, sob uma galhada, que lhe roça quase pela sela; além desmontando, de repente, como um acrobata, agarrado às crinas do animal, para fugir ao embate de um tronco percebido no último momento, e galgando, logo depois, num pulo, o selim; e galopando sempre através de todos os obstáculos, sopesando a destra sem perder nunca, sem a deixar no emaranhado dos cipoais, a longa aguilhada de ponta de ferro encastoado em couro...>>


São traços; mas são firmes; destacam com segurança uma das múltiplas faces de um tipo de nossas gentes dos centros.
Há mister ver o quadro inteiro no livro. É admirável. É uma tela empolgante: desenho e colorido ajustam-se e dão-nos a ilusão da realidade viva e palpável.
Há, porém, ali coisa melhor. Caminhamos por entre as filas dos crentes e sectários do "Conselheiro": parecem velhos conhecidos com quem já falamos noutro tempo ou poderemos falar ainda, tão lucidamente se destacam e como que vêm ao nosso encontro:


<<... A multidão repartia-se, separados os sexos, em dois agrupamentos destacados... E em cada um deles um baralhamento enorme de contrastes...
Ali estavam, gafadas de pecados velhos, serodiamente penitenciados, as beatas, êmulas das bruxas das igrejas, revestidas da capona preta lembrando a holandilha fúnebre da Inquisição; as solteiras desenvoltas e despejadas, soltas na gandaíce sem freios; as moças donzelas ou moças damas recatadas e tímidas; e honestas mães de família, niveladas pela mesma reza...
Faces murchas de velhas, esgrouviadas viragos em cujas bocas deve ser um pecado mortal a prece; rostos austeros de matronas simples; fisionomias ingênuas de raparigas crédulas misturavam-se em conjunto estranho. Todas as idades, todos os tipos, todas as cores... Grenhas maltratadas de crioulas retintas; cabelos corredios e duros, de caboclas; trunfas escandalosas, de africanas; madeiras castanhas e louras, de brancas legítimas, embaralhavam-se sem uma fita, sem um grampo, sem uma flor!...
Aqui, ali, extremando-se a relanços nos acervos de trapos, um ou outro rosto formosíssimo, em que ressurgiam, suplantando impressionadoramente a miséria e o sombreado das outras faces rebarbativas, as linhas dessa beleza imortal que o tipo judaico conserva imutável através dos tempos. Madonas emparceiradas a fúrias, belos olhos profundos, em cujos negrumes afuzila o desvario místico...
Destaca-se mais compacto o grupo varonil dos homens, mostrando idênticos contrastes: vaqueiros rudes e fortes, trocando, como heróis decaídos, a bela armadura de couro pelo uniforme reles de brim americano; criadores, abastados outrora, felizes pelo abandono das boiadas e dos pousos animados; e, menos numerosos, porém, mais em destaque, gandaeiros de todos os matizes, recidivos de todos os delitos...
Prestigia-os o renome de arriscadas aventuras que a imaginação popular romanceia e amplia... De joelhos, mãos enclavinhadas sobre o peito, o olhar tençoeiro e mau esvai-se-lhes contemplativo e vago... José Venâncio, o terror da Volta Grande, deslembra-se das dezoito mortes cometidas e do espantalho dos processos à revelia, dobrando, contrito, a fronte para a terra.
Ladeia-o o afoito Pajeú, rosto de bronze vincado de apófises duras, mal aprumado o arcabouço atlético. Estático, mãos postas, volve, como as suçuaranas em noite de luar, olhar absorto para os céus.
Logo após o seu ajudante de ordens inseparável, Ladau, queda-se igualmente humílimo, joelhos dobrados sobre o trabuco carregado...
Chiquinho e João da Mota, dois irmãos aos quais estava entregue o comando dos piquetes vigilantes nas entradas de Cocorobó e Uauá, aparecem unidos, desfiando, crédulos, as contas do mesmo rosário...
Pedrão, cafuz entroncado e bruto, que com trinta homens escolhidos guardava as vertentes da Cana Brava, mal se distingue, afastado, próximo de um digno êmulo de tropelias. Estevão, negro reforçado, disforme, corpo tatuado à bala e à faca, que lograra vingar centenas de conflitos, graças à disvulnerabilidade rara. Joaquim Trancapés, outro espécime de guerrilheiro sanhudo que velava no Angico, ombreia com o Major Sariema, de estatura mais elegante, lidador sem posição fixa, destemeroso mas irrequieto, talhado para as arrancadas subitâncas e atrevidas...
Antepõe-se-lhe, no aspecto, o tragicômico Raymundo Boca Torta, do Itapicuru, espécie de funâmbulo patibular, face contorcida em esgar ferino, como um traumatismo hediondo.
...O velho Macambira, pouco afeiçoado à luta, de coração mole, segundo o dizer expressivo dos matutos, mas espírito infernal no gizar ciladas incríveis, espécie de Imanus decrépito, mas perigoso ainda, tomba de bruços no chão...
... Alheio à credulidacle geral, um explorador solerte, Vila Nova, finge que ora, remascando cifras. E na frente de todos, o comandante da praça, o chefe do povo, o astuto João Abade, abrange no olhar dominador a turba genuflexa... No meio destes perfis trágicos uma figura ridícula, Antônio Beatinho, mulato espigado, magríssimo, adelgaçado pelos jejuns, muito da privança do Conselheiro; meio sacristão, meio soldado, misseiro de bacamarte, espiando, observanclo, indagando, insinuando-se jeitosamente pelas casas, esquadrinhando todos os recantos do arraial, e transmitindo a todo o instante ao chefe supremo as novidades existentes. Completa-o, como um prolongamento, José Félix, o Taramela, quinhoeiro da mesma predileção, guarda das igrejas, chaveiro e mordomo do Conselheiro, tendo sob as ordens as beatas de vestidos azuis cingidas de cordas de linho, encarregadas da roupa, da refeição exígua daquele, e de acenderem diariamente as fogueiras para as rezas... E um tipo adorável, Manuel Quadrado, olhando para tudo aquilo com indiferença nobilitadora. Era o curandeiro, o médico.
Na multidão suspeita a natureza tinha, afinal, um devoto, alheio à desordem, vivendo num investigar perene pelas drogarias primitivas das matas...>>
[p. 170]

Eis aí; é uma galeria de indivíduos que são como que índices ou sumários de um meio, de uma situação, de um momento.
São como feixes de fatos, cada um com seu rótulo, sua rubrica inapagável e eterna; são como expoentes indicadores das correntes subterrâneas das multidões; fórmulas lógicas, obtidas por processos indutivos, como integração completa de milhares de fenômenos observados. Mas são definições ditadas pela própria natureza: cada indivíduo é um resumo e um compêndio. Ali estão as cristalizações humanas obtidas por quatrocentos anos do labutar de uma meia cultura incongruente, cheia de falhas, grosserias e indisciplinas de toda a casta. E todas são reais e pegadas em flagrante.
Parece uma página do "Purgatório" ou dos quadros tétricos de Dostoievsky. Mas onde o escritor projeta em cheio os raios de seu aparelho de descrever é quando traça alguma cena de neurose coletiva. Ouvimos o esplêndido e o magnífico; ouçamos agora o surpreendente:

<<É a cena do 'beija das imagens', após as rezas intermináveis: Antônio Beatinho, o altareiro, tomava de um crucifixo, contemplava-o com o olhar diluído de um faquir em êxtase; aconchegava-o do peito, prostrando-se profundamente; imprimia-lhe ósculo prolongado; e entregava-o, com gesto amolentado, ao fiel mais próximo, que lhe copiava, sem variantes, a mímica reverente.
Depois erguia uma virgem santa, reeditando os mesmos atos; depois o Bom Jesus.
E lá vinham, sucessivamente, todos os santos, e registros, e verônicas, e cruzes, vagarosamente, entregues à multidão sequiosa, passando, um a um , por todas as mãos, por todas as bocas e por todos os peitos. Ouviam-se os beijos chirriantes, inúmeros e, num crescendo, extinguindo-lhes a assonância surda, o vozear indistinto das prédicas balbuciadas à meia voz, dos mea-culpas ansiosamente socados nos peitos arfantes e das primeiras exclamações abafadas, reprimidas ainda, para que se não perturbasse a solenidade.
O misticismo de cada um, porém, ia-se a pouco e pouco confundindo na nevrose coletiva. De espaço a espaço a agitação crescia, como se o tumulto invadisse a assembléia, adstrito às fórmulas de programa preestabelecido, à medida que passavam as sagradas relíquias.
Por fim as últimas saíam, entregues pelo Beato, quando as primeiras alcançavam as derradeiras filas dos crentes.
E cumulava-se a ebriez e o estonteamento daquelas almas simples. Desbordavam as emoções isoladas, confundindo-se repentinamente, avolumando-se, presas no contágio irreprimível da mesma febre; e, como se as forças sobrenaturais, que o animismo ingênuo emprestava às imagens, penetrassem afinal as consciências, desequilibrando-as em violentos abalos, salteava à multidão um desvairamento irreprimível.
Estrugiam exclamações entre piedosas e coléricas: desatavam-se movimentos impulsivos, de iluminados; estalavam gritos lancinantes, de desmaios. Apertando ao peito as imagens babu-
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jadas de saliva, mulheres alucinadas tombavam escabujando nas contorções violentas da histeria, crianças aterradas desandavam em choros; e, invadido pela mesma aura da loucura, o grupo varonil dos lutadores, dentre o estrépito, e os tinidos, e o estardalhaço das armas entrebatidas, vibrava no mesmo íctus assombroso, em que exploclia, desapoderaclo, o misticismo bárbaro>>.

Nada, porém, iguala a gravura do fluxo e refluxo, da troca recíproca de influências entre o grande louco e a multidão que o seguia. Feitura dela a principio, veio a atuar como causa por seu turno; mas só chegou à posse completa de sua mesma vesânia, quando a viu compartilhada pelas gentes que o cercavam. Essas variantes sutis, que só poderiam ser notadas por uma alma por sua vez complicada, ressaltam nestes períodos:


<A pouco e pouco todo o domínio que, sem cálculo, derramava em torno, parece haver refluído sobre si mesmo. Todas as conjeturas ou lendas que para logo o circundaram fizeram o ambiente propício ao germinar do próprio desvario. A sua insânia estava, ali, exteriorizada.
Espelhavam-na a admiração intensa e o respeito absoluto que o tornaram em pouco tempo árbitro incondicional de todas as divergências ou brigas, conselheiro obrigado em todas as decisões. A multidão poupara-lhe o indagar torturante acerca do próprio estado emotivo, o esforço dessas interrogativas angustiosas e dessa intuspeção delirante, entre os quais evolve a loucura nos cérebros abalados.
Remodelava-o à sua imagem. Criava-o.
Aquele dominador foi um títere. Agiu passivo, como uma sombra...>>


Belo! Belo!.. . A Academia recebe em seu seio um poderoso escritor, mas um que pode colocar idéias, além de pronomes, porque estuda e medita, porque sabe ver e inquirir. Mas, afinal, é preciso generalizar e concluir.
Que lição podemos tirar do discurso, dos artigos, dos estudos, do livro do Sr. Euclides da Cunha, eu digo lição que possa aproveitar ao povo que já anda cansado de frases e promessas, desiludido de engodos e miragens, sequioso de justiça, de paz, de sossego, do bem-estar que lhe foge, esse amado povo brasileiro paupérrimo no meio das incalculáveis riquezas da sua terra?
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É a terceira tentação a que não posso fugir e não me furtarei a dizer meia dúzia de palavras.
Já andamos fartos de discussões políticas e literárias. O Brasil social é que deve atrair todos os esforços de seus pensadores, de seus homens de coração e boa vontade, todos os que têm um pouco de alma para devotar à pátria. É onde pulsa a mor intensidade dos problemas nacionais, que exigem solução, sob pena, senão de morte, de retardamento indefinido no aspirar ao progresso, no avançar para o futuro.
Vós, Sr. Euclides da Cunha, em vosso discurso, aludindo célere, de raspão, aos nossos desvarios e aos nossos desengonçados e tumultuários esforços e planos de reforma, dizeis que sofremos da vesânia de "reformar pelas cimalhas..."
É a verdade.
Mas por quê?
Reformar pelas cimalhas e não pela base, pelo alicerce... Por quê?
De onde provém esse perpétuo desatino de tantos homens inteligentes?
Em vosso livro, logo nas primeiras páginas, estabeleces que a nossa evolução biológica reclama a garantia da evolução social; "estamos condenados à civilização; ou progredimos ou desaparecemos..."
Logo é que nos julgais no todo civilizados, e, a despeito de tantas aparências enganadoras, corremos perigo... Por quê?
Claro, existe aí um problema a resolver, uma antinomia a explicar.
Noutro lanço do vosso livro, como uma síntese dele, como a lição que brota de vossas meditações, chegasses a este resultado acerca das populações sertanejas do Brasil:


<>.


Logo, temos aqui a mais singular das situações sociais, alguma coisa de gravemente inquietante que é indispensável esclarecer para afastar, para corrigir, para conjurar, se possível, como que duas nações que se desconhecem, separadas no espaço, e ainda mais no tempo, e uma delas votada ao desaparecimento,
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no pensar de um dos maiores talentos da nossa atualidade, um dos mais completos conhecedores do nossa povo!...
Mas essa parte das nossas gentes, destinada, a seu ver, a apagar-se da vida e da história, é a maior parte da nação e é aquela que fundou as nossas riquezas, e é aquela que tem mantido a nossa independência; porque é aquela que sempre trabalhou e ainda trabalha, sempre se bateu e ainda se bate...
Não há nisso uma anomalia, uma raríssima extravagância da evolução histórica? Evidentemente; e por quê? Eis o problema.
Responder a ele cabalmente não é coisa para ser feita nas quatro palavras do final de um discurso acadêmico.
Uma vista completa do assunto exigiria, por assim dizer, o desmontar das diversas peças que formaram e vão formando o nosso povo; o serem elas estudadas uma a uma na sua constituição íntima e na grande alteração que tem sofrido pela fusão neste clima, neste meio. Haveria mister estudar o país, zona por zona, porque existem diferenciações várias a notar aqui e ali, exigidoras de diagnósticos divergentes e terapêuticas especiais. Não é aqui, claro, o lugar de o tentar.
Baste-me consignar que o nosso estremecido povo brasileiro apresenta a sintomatologia geral das nações, a cujo grupo pertence esse grande número de povos de índole e formação "comunitária", especialmente latino-americanos, que têm de suportar a nova concorrência das nações de formação partícularista, colocadas atualmente à frente da civilização industrial do nosso tempo: ingleses, alemães, americanos, canadenses, australianos, flamengos, holandeses, franceses do norte, povos que retêm em suas mãos os capitais movimentadores do mundo moderno.
Mas apresenta essa sintomatologia, ao lado de caracteres que lhe são próprios e o individualizam mais de perto.
Indicar estes últimos, mesmo de relance, é ter uma resposta à pergunta formulada. Apontarei, por brevidade, minhas observações em frases sinóticas.
A crise universal hodierna entre a velha e a nova educação, entre a cansada intuição "comunitária", que procura resolver o problema da existência, apoiando-se na "coletividade", na "comunhão", no "grupo", quer da "família", quer da "tribo", quer do "clã", quer dos "poderes públicos", do "município", da "província", do "Estado", dos "partidos", jogando como uma arma principal das classes ditas dirigentes a "política alimentária", o "emprego público", as fáceis "profissões liberais" ou o mero comércio, a crise entre esta intuição e a educação particularista que encara aquele problema, principalmente como coisa a ser solvida pela energia individual, a autonomia criadora da vontade, a força propulsora do caráter,
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a iniciativa particular no trabalho, as ousadias produtoras do esforço, essa crise universal acha-se no Brasil complicada por causas e circunstâncias especiais de seu desenvolvimento etnológico e histórico. Entre nós a raça colonizadora, acostumada, geralmente, ao comércio, e, em várias zonas do sul e das montanhas de sua terra, à vida de um fácil pastoreio, e, no resto do país, à cultura doce, que é quase uma jardinagem, da vinha, dos frutos arborescentes, como as castanhas, as nozes, os figos, as azeitonas, e, em muito menor escala, do centeio e do trigo, foi obrigada a uma cultura rude e penosa. Recorreu, pela força, ao cativeiro de índios e negros, gentes selvagens alheias ao trabalho agrícola.
Os mestiços das três raças eram, por via de regra, pela mor parte incorporados entre os escravos.
Os colonos reinóis, de gradações e categorias várias, se encarregavam do suavíssimo ofício de "mandar".
E como não, se eram os "senhores" dos outros e os "donos" da terra?
Mas todo mundo não podia ser no campo senhor de engenho, fazendeiro de gado ou de café, proprietário de datas auríferas ou diamantinas, o que importa dizer, que grande parte da população, o grosso proletariado rural, não escravo, não possuía um palmo de terra, porque esta foi desde o começo ficando açambarcada em enormes latifúndios pelos concessionários das sesmarias intérminas.
O aludido proletariado teve fatalmente de acostar-se como agregado à patronagem dos grandes proprietários. É a origem dos doze milhões de brasileiros que habitam todo o interior do pais: matas, sertões, campos gerais, chapadas, chapadões e planaltos, fora das restritas gentes das grandes vilas e cidades da costa ou do centro. Destas, dos habitantes das vilas e cidades, os mandões, diretamente vindos da Europa ou já nascidos no país, apoderavam-se dos cargos públicos ou exerciam o comércio, a mercancia, que teve, no correr de séculos, entre nós todos os caracteres de uma pirataria em grosso. O resto da população livre, o maior número, dividia-se nos povoados ainda em dois grupos, o dos que mourejavam na prática de uns ofícios reles que lhes garantiam uma existência penosíssima e o dos que resvalavam numa pobreza abjeta, repulsiva.
Ainda hoje, por essas terras além, o Brasil é fundamentalmente isto mesmo, sendo apenas a grande novidade moderna a incorporação dos ex-escravos nessa enorme massa de população proletária, quer dos campos, quer das povoações. Originaram-se dessa anomalia inicial várias antinomias que ainda hoje nos atropelam e fazem manquejar. A primeira delas é a
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disparidade entre uma pequena elite de possuidores e proprietários e o avultadíssimo número dos que nada têm, nada possuem, principalmente nas populações rurais.
Segunda extravagância do gênero é a antinomia entre outra elite, a dos intelectuais, eivada de estrangeirices de toda a casta, principalmente na capital e nas grandes cidades, e o imensíssimo número de analfabetos ou incultos que constituem a nação por toda a parte.
Esta última extravagância agrava-se de um peculiar despropósito que, repetido, a toda hora, nos jornais, nos discursos e nos escritos dos que entre nós dirigem a opinião, tem produzido soma incalculável de males, desviando os governos, e todos os que disso podiam curar, de cumprir o seu dever para com a maioria da população nacional.
Quero falar da singularíssima teima dos nossos intelectuais de toda a ordem de dizerem mal das gentes do centro, sertanejos ou não, sem se lembrarem que, há quatrocentos anos, elas é que trabalham e produzem, elas é que se batem, isto é, sem se lembrarem que elas é que têm sustentado o Brasil como povo que vive e como nação que se defende.
Aos fazendeiros e senhores de engenho tratam como adversários e maus sujeitos.
"Magnatas", "senhores feudais", "déspotas", "insaciáveis parasitas" são as gentilezas com que os brindam.
Aos homens do trabalho do campo consideram urna turba amorfa que vai desaparecer, bandos de "sertanejos", "jagunços", "matutos", "tabaréus", "caboclos", "caipiras, "gaúchos", quase sem valia.
E não lhes ocorre, repito, que essas gentes é que, com os ex-escravos, nelas hoje incorporados, criaram, com todas as falhas, a fortuna, a riqueza existente no país.
O fazendeiro exerceu e exerce ainda a natural patronagem, própria do regime agrícola ou pastoril dos países como o nosso; os sertanejos, matutos e caipiras, gaúchos e roceiros de todas as gradações - são os únicos operários pastoris ou agrícolas - com que temos contado, não metendo em conta alguns milhares de colonos que só recentemente foram introduzidos e em raras zonas do território vastíssimo.
A força de resistência, em que pese aos fantasistas, da população nacional, está precisamente nessas gentes do interior, nos 12 milhões de sertanejos, matutos, tabaréus, caipiras, jagunços, caboclos, gaúchos...
O problema brasileiro por excelência consiste exatamente em compreender este fato tão simples o tratar de fazer tudo que for possível em prol de tais populações, educando-as, ligando-as ao solo, interessando-as nos destinos da pátria.
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O maior obstáculo a isto tem sido as "literatices" dos escritores e políticos que se julgam, eles, esses desfrutadores de empregos públicos, posições e profissões liberais, os genuínos e únicos brasileiros, a alma e o braço do povo e por isso se arvoraram em nossos diretores...
Outra singularidade latino-americana, agravada no Brasil, e oriunda das precedentes, é que não conseguimos formar ainda um povo devidamente organizado de alto a baixo.
Faltam-nos a hierarquização social, o encadeamento das classes, a solidariedade geral, a integração consensual, a disciplina consciente de um ideal comum, a homogeneidade íntima.
Falta-nos a radicação à terra pela propriedade espalhada largamente, pelo cultivo, pela produção autônoma da riqueza nacional. O nosso povo está em geral desenraizado do solo ou nele subsiste como uma vegetação estranha.
Faltam-nos o aferro ao trabalho, a base econômica livre, ampla e segura, e, mais, a masculinidade da vontade, o espírito de iniciativa, a audácia do esforço, do empreendimento, da luta pelo progresso e bem-estar.
Nota-se de sobra a indisciplina, o espírito de clã, a divisão, a desarmonia, a falta de solidariedade, de consciência coletiva nacional. Destarte, se, por um lado, não temos o operariado rural organizado, afeito ao trabalho regular e seguido, nem uma classe numerosa por toda a parte espalhada, de pequenos proprietários agrícolas; nem a dos médios proprietários da mesma espécie; porque as terras são devolutas, de heréus, ou estão nas mãos dos grandes latifundiários, hoje geralmente decadentes; não possuímos, por outro lado, o vasto operariado urbano nacional pelo Brasil em fora; nem a pequena burguesia proprietária, farta e abastada; nem tampouco a grande burguesia comparável à das fortes nações particularistas, opulenta, poderosa, progressiva, e, menos ainda, a vasta aristocracia do dinheiro, o grupo dos milionários, dos banqueiros, dos capitalistas compatrícios empreendedores.
Não possuímos os grandes mineradores, os grandes criadores, os grandes agricultores, os grandes industriais à moderna.
Esta geral falta de base econômica estável e independente, que repercute na família e na índole do povo, pela incerteza dos meios e modos de viver, leva-nos a não ter, nem como os povos orientais, a estabilidade patriarcal, de uma parte, e, nem de outra, a iniciativa da coragem e espírito empreendedor particularista.
É também uma antinomia, e das mais sérias, de nossas gentes.
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Este mal provém, como se viu, das origens, da matéria-prima humana empregada no povoamento, na formação da nação e também da natureza do meio, áspero, em grande parte do país, e ao mesmo tempo enganoso, pelas facilidades outorgadas à vadiagem com a abundância de produtos espontâneos, aproveitáveis sem labor; duro para a grande e a intensa cultura, doce para a vida improvidente dos improgressivos.
A estes dois fatores fundamentais juntam-se, neste particular, efeitos que estão desde o começo atuando como causas maléficas; os vícios, acumulados por quatrocentos anos, da escravidão, da política meio de vida, da empregomania, do horror pela vida afanosa do campo no meio das indústrias produtivas, da atração para os folgados afazeres dos cargos oficiais, das profissões letradas e da mercancia nas cidades.
Outra grande singularidade da evolução brasileira é o fato originalíssimo que não tem sido notado e menos apreciado na sua genuína significação, e é explicável pelos fenômenos sociais e políticos já aduzidos.
Refiro-me à negação pelo Brasil dada à lei histórica, observada na milenária evolução do Ocidente, por toda a parte, quando os escravos e servos se tornaram em homens livres.
Em todo o Ocidente a mor porção daqueles trasmudou-se nessa massa de pequenos proprietários agrícolas, presos, pois, ao solo pelos mais sólidos interesses, e que veio a constituir o cerne, o âmago, o nervo das nações modernas; a outra porção transformou-se nesse corpo de operários rurais, também ligados ao solo, e que é outra das bases firmes das nações fortes e futurosas. No Brasil nada disto.
Tivemos por duas vezes a solene abolição em massa. A primeira vez foi na última fase do século XVIII, quando foram libertados os escravos índios e mestiços de índios. Fugiram quase todos para os matos e os que ficaram em aldeamentos não se transformaram em proprietários de terras e nem se entregaram à cultura. Prolongaram uma vida de misérias, servindo ofícios inferiores até se obliterarem quase inteiramente na massa do proletariado anônimo e apagado das vizinhanças.
A outra vez foi ontem, em nossos dias, quando se libertaram os escravos de origem africana e mestiços deles na penúltima década do século XIX.
A debandada foi ainda mais geral.
Os ex-escravos, que não tinham sido preparados pelo colonato, nem pela adscrição ao solo, devido à solene incapacidade da famosa elite de bacharéis palreiros que tem sido sempre Governo nesta terra e tem tido nas mãos os destinos do Brasil,
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os ex-escravos deram em geral na calaçaria e emigraram para os povoados...
Aí vivem aos trambolhões nuns empregos pífios.
Ali, nas cidades, como nesta capital, nenhuma aspiração elevada e nobre lhes despontou na alma.
Aumentaram apenas a nota cômica que nos cerca por todas as faces da existência. Uma das mais características dos dois últimos decênios é o sério com que distintas e graves damas de cor imitam os trajos, os gestos, os cacoetes das mais finas arianas européias ou fluminenses, e a doce ternura com que se tratam de "Excelências..." V. Excia. para aqui, V. Excia. para acolá. É um regalo.
Mas não era disto que havíamos mister.
A politicagem, embevecida no desfrutar das pingues posições, estupidificada pela dupla miragem dos capitais e dos braços estrangeiros, como se esses tivessem sido criados para estarem à nossa disposição e nos serem ofertados de mão beijada, nada viu, de nada curou e nem sabia curar... Pois poder-se-ia lá pensar que avezados cultores da advocacia administrativa, insignes inventores de malabarescas concessões, eles e seus aliados dos governos, dos ministérios, dos parlamentos, do jornalismo, espreitadores de lucros, favores e vantagens, interrompessem seus graves afazeres para pensar no povo, na plebe, nos matutos, nos sertanejos, nos ex-escravos, na lavoura!...
Afeiar o estilo, aleijar a frase, esquecer, por instantes que fosse, os embevecimentos idiomáticos, com esses plebeísmos rebarbativos, especialmente agora que tudo deve ser "chic", como as avenidas e os palacetes da moda.
Que loucura!...
Mas eu insisto: não era disto que havíamos mister. O que precisávamos, e seria de uma vantagem máxima, incalculável, era que não tivéssemos desmentido a lei histórica; era que no século XVIII e mais ainda no século XIX a massa enorme de três milhões de escravos, ou mais, levando em conta as libertações parciais operadas em todo o correr dos dois séculos, tivesse sido transformada num corpo sólido de proprietários e operários agrícolas.
Havia meios de o conseguir, se o governo em nossa terra tivesse sido sempre uma função dos mais capazes e não essa seleção inominada, essa floração inclassificável que tem sido o espanto das almas dignas.
E eis por que perdeu-se, em duas ocasiões solenes, o ensejo de se irem enchendo os quadros da população livre com a sua natural hierarquização. E eis por que, e é mais uma das nossas peculiares originalidades, no Brasil são só facilmente
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realizáveis, sem intervenção estrangeira, os fatos políticos e até sociais, que podem espontaneamente ser transformados em "temas" literários, em "assuntos" de escritos e discursos, que deixem larga margem a frases bonitas, a períodos elegantes, a meneios retóricos, eloqüentes.
Iludem os faladores toda a gente com os belos e sonoros palavreados. Apontam os díscolos como retardatários, senão inimigos da pátria e do povo, o pobre "João Sem Terra", na frase de Proudhon, que é no Brasil amaríssima realidade. Temos chegado a perder até a consciência de nossos destinos e não sabemos mais para onde nos levam.
E eis por que, quando aporta em nossas plagas o estrangeiro inteligente, ilustrado, sabedor, como esse saudoso Luís Couty, cujo livro, "O Brasil em 1884", deveria andar em todas as mãos e estar traduzido e espalhado por todas as escolas, apenas lança os olhos para a nossa população, não essa que flana na rua do Ouvidor, julgando-se digna rival da que percorre o "Bois de Boulogne" ou a "Unter den Linden", senão a outra, a que produz os pesados milhões com que se pagam os encargos e esbanjamentos da lista civil, do funcionalismo público, das loucuras de uma administração tumultuária ou imbecil; essa que trabalha, porque é ela quem suporta os ásperos afazeres dos seringais, da cana-de-açúcar, do café, da mineração, dos criatórios e pastoreios, das charqueadas e de todos os duros misteres da produção nacional, lá fora nos campos e nos recessos do país, ou nas cidades, nas fábricas e nos mais agros ofícios; essa que "trabalha" e se "bate", porque é também ela que na generalidade enche os quadros do exército e da armada, e, quando chega a hora do perigo, deixa, na frase do poeta, a "página da vida dobrada e parte para morrer..." eis por que, dizia, o estrangeiro, que tem olhos para ver, logo que os lança sobre o nosso tão querido e tão mal dirigido Brasil, é para ter frases como estas tão verdadeiras, que nos fustigam como flamas:


<Dos seus doze milhões de habitantes (hoje serão talvez quinze, o que não muda em nada o raciocínio), um milhão é de índios e inúteis ou quase, um milhão e meio é de escravos (hoje os ex-escravos e seus descendentes andam quase inúteis, esparsos nos povoados e raros nas antigas fazendas e engenhos). Ficam nove milhões (serão talvez agora doze), mais ou menos. Destes, 500 mil pertencem a famílias proprietárias de escravos: são fazendeiros, advogados, médicos, engenheiros, empregados, administradores, negociantes. Acontece, porém, que o largo espaço compreendido entre a alta classe dirigente e os escravos (agora criados e empregados de toda a ordem) por ela utilizados não se acha suficientemente preenchido. Seis mi-
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lhões (atualmente mais) de habitantes, pelo menos, nascem, vegetam e morrem sem ter quase servido a sua pátria. No campo serão agregados de fazendas, caipiras, matutos, caboclos; nas cidades, serão capangas, capoeiras, ou simplesmente vadios e ébrios. Capazes todos eles muitas vezes de labores penosos, como os da desbravação das matas e arroteamento das terras, ou da criação de gados, não terão, porém, nem idéia da economia nem do trabalho seguido e perseverante.
Os mais inteligentes, os mais ativos, dois milhões talvez, serão negociantes, empregados ou criados.
Em parte alguma se encontrarão, nem as massas fortemente organizadas dos livres produtores agrícolas ou industriais, que, nos povos civilizados, são a base da ordem e da riqueza, nem tampouco as massas dos eleitores conscientes, sabendo votar e pensar, capazes de imporem aos governos uma direção definida>>.


É forçoso acrescentar que, com todos esses defeitos e lacunas, trabalham muito mais que a faustosa elite dirigente, cujos esforços negativos têm sido quase sempre em pura perda do país. São os agentes da política alimentaria, cujas vantagens práticas para a nação são puramente ilusórias.
E ainda não está terminada a lista das nossas antinomias latino-americanas, nomeadamente nacionais. Uma delas, e das mais sérias, é que não tivemos nunca, durante quatro séculos, senão revoluções e movimentos políticos, que longe de facilitarem a constituição social do povo, embaraçaram-na ao invés consideravelmente. O começo de falha revolução social que se de- via iniciar com a emancipação dos escravos, foi logo entravado e desviado pelo abalo político da proclamação da República.
O movimento social que devia prosseguir no intuito de se criar um povo de pequenos proprietários agrícolas e de trabalhadores livres, todos ligados à terra, já com elementos nacionais, já com elementos alienígenas, remodelando a propriedade territorial, parou de súbito e tudo atordoou-se com a inesperada e intensa reviravolta política, que atraiu todas as atenções. Veio à tona, um momento ao menos, o militarismo, cercado de abusos.
Surgiu de todos os lados o espírito de revolta e desordem.
Reapareceu a velha tendência oligárquica mais ou menos apagada pela ação do império e retomou posição em todos os estados. Desencadeou-se febrilmente o espírito de ganância e fortuna fácil ou a loucura do encilhamento; parou a colonização; surgiram as crises do trabalho e da produção.

"Encilhamentos", "revoltas", das quais a de Canudos tão vigorosamente descrita pelo nosso consócio foi apenas um rápido episódio, trouxeram a bancarrota, a moratória, o "funding-loan", a desordem econômica geral.

E como era preciso que nos iludíssemos com faustosas miragens, decretaram-se avenidas e "boulevards", multiplicando fantasticamente os empréstimos, avolumando as dívidas a um ponto inacreditável e gravemente perigoso.
O capital estrangeiro, sempre sôfrego para empregar-se, canalizou-se para cá, mas com a segurança de garantias definidas na hipoteca de rendas aduaneiras e, em vários pontos, com agentes seus nas repartições fiscais.
A escravidão foi abolida e com ela a realeza; mas, com as nossas loucuras políticas todas feitas pelas admiráveis classes dirigentes, não curamos de educar as populações no trabalho remunerador e autônomo, não cuidamos de preparar o operariado livre nacional nem da colonização habilmente encaminhada nem da exploração da terra pela indústria magna, a cultura.
Chegamos destarte à suprema degradação de retrogradar, dando de novo um sentido histórico às oligarquias locais e outorgando-lhes nova função política e social, que estão a exercer nos estados com o mais afoito desembaraço: e essa nova função vem a ser a consciência geralmente espalhada da impossibilidade de se deitar uma oligarquia abaixo sem que se levante outra, porque ou oligarquia ou anarquia...
E mais, digo-o com dor, chegamos ao ponto de não poder atirar em terra qualquer um desses governichos criminosos e asfixiadores senão pela traição ou pelo assassinato!
Com estas nefandas preocupações políticas, cujo principal móvel é fazer uma parte da população trabalhar para sustentar a outra, não admira que seja detestável o estado social da nação e peculiarmente instável e embaraçosa sua posição econômica.
Não admira que se levantem clamores constantemente de todos os lados. Inteligente, a seu modo, a afanosa elite sonha reformas aptas a calarem os brados das populações e mais aptas ainda a conservá-la na direção dos negócios.
É então que surge o negativo esforço de "reformar pelas cimalhas", na vossa frase, Sr. Euclides da Cunha. No principal, o estado social do povo que deve ser remodelado por uma educação adequada à vida moderna, e pelo aproveitamento hábil da colonização estrangeira e nacional, não se cogita.

Nas suas reformas começam pelo fim. Julgam que com o alargamento de ruas podem resolver os tremendamente inquietadores problemas brasileiros. A nação chegou ao século XX, o século em que se vai resolver o seu destino, inteiramente desapercebida para a luta.

A crise de nossa transformação para o moderno viver, tivemos a infelicidade que viesse a coincidir com o surto assombroso de força e riqueza dos grandes povos progressivos de formação particularista. Assaz temos já sentido a garra do leão em nossas carnes.
As forças vivas da economia da nação estão passando ou já estão quase todas nas mãos deles, o grande comércio bancário, o farto jogo dos câmbios, o alto comércio importador e exportador, as melhores empresas de mineração, de viação, de transportes, de navegação, gênero de obras de toda a casta, acham-se nesse número.
Classes inteiras da antiga mercancia nacional desapareceram na miséria ou debatem-se nos paroxismos de um morrer inglório como essa dos comissários de café.
A singular rubiácia, incrível fato, chega hoje para enriquecer com milhões as casas importadoras do Havre, Hamburgo, Londres, Nova Iorque e as filiais exportadoras que aqui montaram, além dos grandes torradores estrangeiros, e só não chega para enriquecer quem a produz: o fazendeiro nacional, reduzido à miséria com a agravação dos impostos e o operário assalariado que vence mínimas pagas por seu trabalho...
Só falta que os milionários alienígenas, blindados pelos trustes, se apoderem diretamente das fontes de produção, das fazendas. Caminhamos para lá, porque esta evolução já está iniciada.
Deste modo, claro, não é de "reformar pelas cimalhas" que havemos mister.
Não estamos no caso de ter academias de luxo, quando o povo não sabe ler; de ter palácios de Monroe, quando a mor parte da gente mora em estalagens e cortiços, e as casas de pensão proliferam; de ter avenidas à beira-mar e teatros monumentais, que vão ficar fechados, quando não temos fartas fontes de renda, quando a miséria é geral e quase todas as cidades e todas as vilas do Brasil são verdadeiras taperas; de ter cá a reunião do Congresso Pan-Americano, para dar-lhe, como ilustração, as trucidações de Mato Grosso e o assassinato de deputados e senadores, em pleno dia, nos desregramentos de uma política feroz!...
Não estamos no caso de contrair empréstimos loucamente avultados e ruinosos para os aplicar em obras suntuárias, quando os serviços mais simples estão por organizar por todo o país; quando temos um enorme "déficit", não falo do orçamentário, o "déficit" da União, dos Estados, das Municipalidades, falo do "déficit" do povo, aquele que os economistas chamam "déficit de subsistências", porque possuindo o país talvez mais fértil do mundo, precisamos de comprar fora a mor porção das coisas indispensáveis à vida... e assaz considerável parte da população desceu até à degradação do "jogo do bicho"...

Os governos, os chefes políticos, os diretores dos partidos, os grandes, os potentados, todos os que formam essa classe dirigente, que nada dirige, não têm querido cumprir o seu mais elementar dever para com as populações nacionais, inquirindo de seus mais inquietantes males, de suas mais urgentes necessidades. A literatura não o tem também cumprido, estudando-as, dizendo-lhes a verdade, educando-as, estimulando-as, corrigindo-as... entretanto é urgentíssimo que nos aparelhemos. A situação é esta:
O grande proprietário e produtor de toda a ordem do interior perdeu o escravo, nervo do trabalho; não lhe sendo possível reduzir o colono estrangeiro, nos pontos onde ele existe, à condição do antigo trabalhador, não tem tido a plasticidade exigida para a transformação imposta pelo novo estado social. E, como não tem capacidade por si para o trabalho, nem o encontra amplo na população rural ambiente, nem lhe ocorre dividir os enormes latifúndios e tentar a criação da pequena exploração agrícola, deblatera-se e decai.
Perdeu o Brasil o quase monopólio do açúcar, do ouro, dos brilhantes, está muito abalado no do café, e, pelo sistema seguido no Amazonas, não admira que venha a ficar abalado também no da borracha; e que fará ele?
Isto nos seus eminentes e culminantes ramos econômicos, nas suas mais pingues fontes de riqueza.
O grosso da população é paupérrima e desarticulada. Nos campos, nas roças, nos sertões, no interior, produz, mas produz pouco e sem sistema. Nas vilas e cidades quase nada produz em pequenos e mal organizados ofícios e um pouco mais nas modernas fábricas instaladas em vários pontos, onde não avultado operariado nacional, impelido loucamente por péssimos elementos estrangeiros, explora um capitalismo que se poderia chamar quebrado: porque nós não temos grandes fortunas, fartas somas acumuladas.
E aqui ocorre assinalar ainda uma inqualificável extravagância da nossa invencível mania liberalizante. Quero falar das duas contraditórias espécies de imigrantes que com mais freqüência demandam agora as nossas plagas, e que nos irão fatalmente trazer, e já estão trazendo, consideráveis tropeços: "frades e anarquistas"!...
Os que ninguém quer, os que as velhas nações cultas expelem de seu seio, os obscurantistas refeces e os desordeiros incuráveis, nós os acolhemos com a mais criminosa leviandade. Tal o motivo da esquisita situação em que nos debatemos, assistindo ao original conúbio do fanatismo e da desordem. Tal a razão por que temos as paredes quase diárias, antes de termos as indústrias...
Singular país!
Singularíssimos governos!
Um funcionalismo incontável se vai encarregando de encher o vácuo. É o caso de concluir convosco, Sr. Euclides da Cunha: ou "nos transformamos pela base ou sucumbiremos".
Vós vos referistes aos esquecidos e desavisados sertanejos de entre o Itapicuru, da Bahia, e o Parnaíba, do Piauí. Não vejo o motivo para essa seleção da morte, essa escolha dos que vão desaparecer!
Desaparecemos então todos; porque todos sofremos fundamentalmente dos mesmos vícios e defeitos. Mas há alguma coisa a tentar para resistir. Olhemos para o Japão; transformemo-nos, como ele. Nesta ordem de assuntos, dizia-me, não há muito, um inteligente viajante estrangeiro: Vós brasileiros entrastes agora numa grande febre de melhoramentos nesta cidade e creio que noutras pelo país em fora. Sim; é fato.
Mas, obtemperou, tendes tido idéia de iniciar a colonização e povoamento nas admiráveis terras do Rio Branco, reserva providente, que será a única base que tereis para manter a posse do vale amazônico? Não.
Tendes tido o cuidado de sistematizar os trabalhos dos seringais, vedando o estrago das plantas, e, principalmente, tendes procurado prender ali, em pontos vários, a população ao solo, pela agricultura e indústrias estáveis? Não.
Tendes providenciado para que renasça nas vossas extensíssimas zonas pastoris, desde o norte até as fronteiras do Rio Grande, a excelente indústria da criação em todas as suas múltiplas variedades? Não.
Tendes com o sistema de barragens romanas corrigido as condições do solo de vosso país na famosa região das secas? Não.
Haveis cogitado do renascimento da indústria do açúcar, fonte outrora da vossa riqueza, e que, por cuidados especiais, pode levar de vencida a beterraba, atenta a superioridade incalculável da cana? Não.
E o da magnífica indústria da mineração, noutro tempo tão florescente? Não.
E haveis, sem dúvida, já vos preocupado com os florescimentos das culturas do algodão brasileiro, que não tem superior no mundo, e, peculiarmente, com a do tabaco, que rivaliza com o de Cuba? Não.
Com certeza, porém, tendes atendido, com peculiar carinho, à produção dos cereais nas regiões aptas do norte e sul, para que não andeis a comprar fora os meios de subsistência? Não.
Sem a menor vacilação, andais preocupados com os meios práticos do povoamento da terra, aproveitando o que se pode chamar a colonização nacional, atraindo para o trabalho rural as populações deserdadas, esses esforçados cearenses, por exemplo, fazendo-lhes concessões, dando-lhes terras, meios de trabalho? Não.
Haveis, em compensação, envidado hercúleos esforços para a difusão cuidadosa dos colonos estrangeiros por todas as boas zonas brasileiras no intuito de ir reforçando as gentes existentes? Não.
E, nomeadamente, estais preparando a assimilação dos núcleos germânicos que subsistem íntegros em terras vossas? Não.
Mas não vos devo, por certo, ter escapado a necessidade urgentíssima de articular o pais com vias férreas de norte a sul e de leste a oeste, vias férreas que levam sempre consigo o povoamento do país, sem falar em estradas vicinais? Não.
Afinal, porém, haveis acabado com os velhos abusos, com a famosa moleza do meridional, estais, por uma educação rija, segura, forte, enérgica, adequada, transformando o caráter nacional e preparando-o, pela disposição de coragem, espírito de progresso, de atividade, de iniciativa, de ardor pelo trabalho produtivo, para dispensar os hábitos comuniáos, a tutela do Estado e outros achaques latinos, que têm sido a praga de nossas gentes? Não.
Então, meu caro senhor, não tendes feito nada!... Tendes sido apenas o joguete do capital estrangeiro, sôfrego por emprego a bom juro, e de certas corporações ou indivíduos, postos por ele a seu serviço, e que precisavam de apanhar grossas somas numa espécie de novo encilhamento... Não consta que, em todo correr da história de mais de dez mil anos, alargamentos de ruas e aberturas de avenidas numa cidade qualquer, mero luxo a que as nações se entregam quando, cansadas de riqueza, entram a caducar, tivessem sido meio de solver os fundos males sociais, as gravíssimas inquietações de um povo.
Despediu-se e deixou-me triste. Tinha-se desmoronado, a meus olhos, todo o prestígio da "Avenida à Beira-Mar", por onde eu já andava a ver desfilar o Brasil glorioso e próspero, dando leis ao mundo... E mais ainda essa fantástica raridade do "Canal do Mangue", que devia ofuscar todas as Venezas existentes e por existir (1). E, todavia, o programa esboçado, a correr,em meia dúzia de palavras por meu interlocutor estrangeiro é o que temos a fazer, especialmente na sua última parte. Senão cairemos na vossa alternativa, Sr. Euclides da Cunha. O Brasil progredirá, é certo; porque ele tem de ser arrastado pela enorme reserva de força, poder e riqueza, que está nas mãos das três ou quatro grandes nações postadas à frente do imperialismo hodierno. Progredirá, quase exclusivamente, com os braços, os capitais, os esforços, as idéias, as iniciativas, as audácias, as criações dos estrangeiros, já que não queremos ou não podemos entrar diretamente na faina, ocupando os primeiros lugares como colaboradores.
Progredirá, certo; porque, afeiçoado o país pouco a pouco a seu jeito, eles, de posse das grandes forças produtoras, de todas as fontes de riqueza, virão chegando oportunamente e tomando posição seleta entre os habitantes da terra; e, senão estivermos aparelhados, apercebidos, couraçados por todos os recursos da energia do caráter, para a concorrência, iremos, nós os latino-americanos, insensivelmente e fatalmente, para o segundo plano...
Assistiremos, como Ilotas, ao banquetear dos poderosos; ficaremos, os da elite de hoje, na mesma posição a que temos, mais ou menos geralmente, condenado os e índios e seus filhos mais próximos que trabalharam para nós...
Triste vingança da história!
Sabe Deus a mágoa com que o digo...
Portanto, excelsior, excelsior! Sursum corda!
Trabalhemos, eduquemo-nos, reformemo-nos para viver...

NOTAS



(1)Em relação aos tão gabados melhoramentos do Rio de Janeiro, a famosa obra do tumultuário e despótico Dr. Passos, meu interlocutor usou destas frases que eu não quis reproduzir no texto do discurso: 'Mesmo pelo que toca a esta cidade, ouso perguntar-vos: pensou-se em expungi-la dos terríveis cortiços e estalagens que a enrliem o afeiam pestilencialniente quase por todos os lados? Não.'
Pensou-se em tirar de seu centro tantas "cocheiras" e "estábulos", e de seus arrabaldes tantos "capinzais" que a deturpam e corrompem-lhe o ar? Não.
Cuidou-se de retificar e canalizar os lôbregos e nojentos "riachos" que a danificam, do "Rio Comprido", da "Joana", do "Trapicheiro", da "Banana Podre", "Maracanã", e outros que a inundam na época das chuvas? Não.
Elevaram o solo de zonas inteiras urbanas no intuito de impedir essas desastrosas inundações? Não.
Tratou-se de melhorar o sistema de esgotos, o abastecimento de água a não ser no papel? Não.
Então, mesmo por esse lado, quase nada tendes feito, a não ser "obra para inglês ver", segundo vossa característica expressão.
E é verdade, em que pese aos "basbaques de encomenda", que fazem ofício de elogiar a todo transe, à troca de dinheiro ou de emprego...




Euclides da Cunha por Gilberto Freyre






GILBERTO FREYRE
Perfil de Euclides da Cunha


Engenheiro físico alongado em social e humano




Do nome de Euclides da Cunha ninguém sabe separar o do seu maior livro: Os sertões. Mas daí não se deve concluir que Euclides tenha sido um desses autores de obra única e gloriosa da qual se tornam, pelo resto da vida e depois de mortos, uma espécie de maridos de professora.

Ele vive principalmente pela sua personalidade, que foi criadora e incisiva como poucas. Maior que Os sertões.

Seria um erro ver na paisagem do grande livro de Euclides um simples capítulo de geografia física e humana do Brasil que outro poderia ter escrito com maior precisão nas minúcias técnicas e maior clareza pedagógica de exposição. A paisagem que transborda d 'Os sertões é outra: é aquela que a personalidade angustiada de Euclides da Cunha precisou de exagerar para completar-se e exprimir-se nela; para afirmar-se - junto com ela - num todo dramaticamente brasileiro em que os mandacarus e os xiquexiques entram para fazer companhia ao escritor solitário, parente deles no apego quixotesco à terra e na coragem de resistir e de clamar por ela.

Resistir quando todos desistem. Resistir sempre. Clamar no deserto. Clamar pelo deserto. De modo que é Euclides, mais do que a paisagem, que transborda dos limites de livro científico d'Os sertões, tornando-o um livro também de poesia, uma espécie daqueles romances de Thomas Hardy em que a paisagem está sempre entre os personagens do drama, uma como mensagem de profeta preocupado, como outrora os hebreus, com o destino de sua gente e com as dores do seu povo. Preocupado com esse destino e com essas dores através da paisagem sertaneja, para ele menos um tema de materialismo geográfico que um problema do que hoje se chamaria ecologia humana. Também um problema de política e de ética.

O sr. Afrânio Peixoto, em discurso acadêmico, definiu com nitidez a paisagem fixada no livro pouco pedagógico de Euclides da Cunha: "...cenário desmedido e grandioso, rude e magnífico, em que viveu, sofreu e pensou a personagem silenciosa que não se descreve e está sempre presente naquelas páginas... Não é livro de história, estratégia ou geografia, é apenas o livro que conta o efeito dos sertões sobre a alma de Euclides da Cunha".

O Euclides que em 1897 se defrontava com os sertões era ainda um adolescente no incompleto da personalidade, no indeciso das atitudes. Um adolescente que vinha do litoral e de sua civilização, cheio de mãos esquerdas diante dos homens já feitos e das cidades já maduras da beira do Atlântico. Precisando do ermo para sentir-se à vontade. Precisando do deserto para acabar de formar-se no meio do inacabado da colonização pastoril, sem se sentir olhado, observado ou criticado pelos escritores convencionais do Rio de Janeiro. Estes que o aceitassem depois de formado a seu jeito - que não seria decerto o deles, escritores demasiadamente à francesa e à inglesa, una - os melhores; outros "gregos" ou "helenos"; ainda outros castiçamente portugueses, os ouvidos cheios de algodão para não recolherem nenhuma estridência brasileira, nenhuma palavra brutalmente viva que viesse da rua, ou dos restos de senzalas, ou dos sobejos de índios que os compêndios de história do Brasil diziam ter habitado um dia não só os sertões como o litoral brasileiro.

Era o tempo em que o velho Machado, escondendo-se por trás de personagens sempre brancos, ioiôs sempre finos, se fazia adivinhar no humour dos seus romances - talvez os mais profundos que já se escreveram na língua portuguesa - quase um inglês tristonho desgarrado nos trópicos, embora resignado à doçura da vida suburbana de chá com torrada, partidas de gamão e modinhas ao piano, nos sobrados velhos e nas chácaras cheias de escravos e de árvores do Rio de Janeiro de dom Pedro 1l. 0 tempo em que Joaquim Nabuco ao retratar-se menino fidalgo no terraço da casa-grande de Massangana, em páginas de saudade profundamente viril que hão de ficar para sempre em nossa literatura, arredava da vista do leitor, com um pudor de memorialista vitoriano, o que parecesse mais cruamente brasileiro, só faltando fantasiar as jaqueiras exuberantes e quase obscenas de Pernambuco de olmos ascéticos de algum recanto do Norte, não do Brasil, mas da Inglaterra ou da Nova Inglaterra. O tempo de Coelho Neto, de Olavo Bilac, de doutor Francisco de Castro, de B. Lopes, de Domício da Gama, de Alphonsus de Guimaraens, da estréia de Afrânio Peixoto, dos primeiros triunfos de Graça Aranha. O tempo em que Afonso Arinos descrevendo cenas dos sertões mineiros não conseguia se identificar com os aspectos mais antieuropeus da paisagem e da vida sertanejas, permanecendo diante delas o mesmo simpatizante que Eduardo Prado ou o visconde de Taunay.

Desgarrado do "equilíbrio helênico", do "humour inglês", da "elegância renaniana", um ou outro Silvio Romero com os seus modos reiúnas de matutão zangado, suas explosões de mau gosto de bacharel em direito influenciado pelo "germanismo" de Tobias, seu arrivismo de sergipano; mas ao mesmo tempo animado daquele "são brasileirismo" que já levantara obra crua mas monumental: a História da literatura brasileira. Um ou outro Raul Pompéia, arrepiando o português acadêmico com arrojos de estilo menos castiço, descasando substantivos e adjetivos convencionalmente unidos para juntá-los em combinações quase escandalosas de novas. Um ou outro Alberto Torres mais desembaraçado de doutrinas européias nos seus estudos sobre a formação social do Brasil.

Ao helenismo do tempo, ao academismo renaniano, à imitação do humour inglês - que em Machado foi assimilação genial - Euclides não escaparia de todo. Há dele uma declaração expressiva: que se sentia ao mesmo tempo tapuia, celta e grego. Mas já era muito, em plena época de Coelho Neto e B. Lopes, admitir um escritor vitorioso no Rio de Janeiro que fosse um terço tapuio, e não completamente heleno.

O pretendido helenismo dificilmente se encontra em Euclides da Cunha. Se o autor se faz sentir em tantas cenas d'Os sertões - quase no livro inteiro - é pela sua identificação - esta, sim, profunda - com a dor do sertanejo e com a tristeza - antes asiática ou norte-africana do que européia - da vegetação regional; e nunca por superioridades sutis de "grego" ou "heleno" perdido entre os mandacarus. Aqueles mandacarus a princípio "tesos triunfalmente enquanto por toda a banda a flora se deprime"; depois "constantes, uniformes, idênticos"; mas resistindo sempre à "ardência do sol" e dos "areais queimosos" dos sertões. Mandacarus, xiquexiques, "cabeças de frade" - estas uns "deselegantes e monstruosos melocactos de forma elipsoidal" recortadas pelo estilista com requintes de purismo geométrico.

Era natural que nos "areais queimosos" dos sertões Euclides parasse para se retratar ossudo e romântico ao lado dos mandacarus, dos xiquexiques, das "cabeças de frade": o seu "reino" era aquele. O "reino" a que ele próprio se havia de referir uma vez, falando meio desdenhosamente de poetas. Dessas suas palavras se serviria um tanto irônico o geólogo John Casper Branner, com o aplauso do sr. Afrânio Peixoto, para fazer o elogio do poeta d 'Os sertões e a crítica incisiva do seu livro: "o poeta é soberano no pequeno reino onde o entroniza a sua fantasia".

Os sertões foram, na verdade, o reino do poeta Euclides da Cunha. Sua Pasárgada, como diria Manuel Bandeira. Antes de Euclides a paisagem brasileira tivera entre os poetas e os romancistas os seus simpatizantes e até entusiastas: o maior deles José de Alencar. O autor d 'Os sertões foi o primeiro caso de verdadeira empatia. Simpatia só, não: empatia. Ele não só acrescentou-se aos sertões como acrescentou os sertões para sempre à sua personalidade e ao "caráter brasileiro", de que ficou um dos exemplos mais altos e mais vivos. Uma espécie de mártir.

Foi nos sertões que as centenas de mãos esquerdas do magricela desajeitado que já entortara uma espada num instante de fúria - e talvez centenas de penas noutros momentos de raiva menos espetaculosa - começaram verdadeiramente a se disciplinar sob uma vocação poderosa: a de escritor em função da "paisagem brasileira" que ficou sendo para ele mais do que a "imagem da República" - que também teve para Euclides um sentido místico - uma espécie de prolongamento da imagem materna e ao mesmo tempo da própria.

Inmpossível separar Euclides dessa paisagem-mãe que se deixou interpretar por ele, e pelo seu amor e pelo seu narcisismo, como por ninguém.

Na descrição dos sertões, o cientista erraria em detalhes de geografia, de geologia, de botânica, de antropologia; o sociólogo, em pormenores de explicação e de diagnóstico sociais do povo sertanejo. Mas para o redimir dos erros da técnica, havia em Euclides da Cunha o poeta, o profeta, o artista cheio de intuições geniais. O Euclides que descobrira na paisagem e no homem dos sertões valores para além do certo e do errado da gramática da ciência.

O poeta viu os sertões com um olhar mais profundo que o de qualquer geógrafo puro. Que o de qualquer simples geólogo ou botânico. Que o de qualquer antropologista.

O profeta clamou pelos sertões: deu-lhe um significado brasileiro, ao lado do puramente paisagístico, do indistintamente humano.

O artista os interpretou em palavras cheias de força para ferir os ouvidos e sacolejar a alma dos bacharéis pálidos do litoral com o som de uma voz moça e às vezes dura, clamando a favor do deserto incompreendido, dos sertões abandonados, dos sertanejos esquecidos.

Porque ele foi a voz do que clamou a favor do deserto brasileiro: endireitai os caminhos do Brasil! (O Brasil era o seu "Senhor"). Os caminhos entre as cidades e os sertões. Esta foi a grande mensagem de Euclides: que era preciso unir-se o sertão com o litoral para salvação - e não apenas conveniência - do Brasil. O sertão era "salvador": salvador dele, Euclides, e salvador do Brasil. Mensagem transmitida aos homens da República de 89 em palavras de artista interessado pela política. Mensagem deformada depois pelos que fizeram dos sertões em si - e não de sua comunicação com o litoral agrário - quase uma mística, uma espécie de seita protestante que acredita poder salvar o Brasil com a água dos açudes do Nordeste - nos quais se têm talvez empregado somas em desproporção com o seu valor social para a nação brasileira.

Nem o poeta, nem o profeta, nem o artista me parece que turvam n Os sertões ou noutro qualquer dos grandes ensaios de Euclides da Cunha-as qualidades essenciais de escritor adiantadíssimo para o Brasil de 1900 que ele foi: escritor fortalecido pelo traquejo científico, enriquecido pela cultura sociológica, aguçado pela especialização geográfica.

Aquelas qualidades científicas, quem às vezes as diminui no autor d Os sertões comprometendo-as na sua essência, é o orador perdido de amor - amor físico - pela palavra simplesmente bonita ou rara; o orador que a formação científica de Euclides da Cunha não conseguiu esmagar nunca no grande sensual das frases sonoras, deslumbrado desde os dias de colégio, desde o tempo de menino criado em fazenda - quando, informa o sr. Elói Pontes, discursava aos bois no fim das tardes quietas do Rio de Janeiro - pelo efeito das frases, das palavras, dos polissílabos, primeiro sobre os ouvidos, depois sobre os olhos pervertidos em ouvidos. Daí a exagerada sensualidade verbal, a ênfase anticientífica e também antiartística em que às vezes se empasta sua palavra nem sempre a serviço fiel dos seus olhos: traindo-os às vezes para seguir os ouvidos ou a imaginação de adolescente.

Em Euclides, a tendência foi quase sempre para engrandecer e glorificar - como nas óperas - as figuras, as paisagens, os homens, as mulheres, as instituições com que se identificava. Engrandecer, alongando: à sua imagem, talvez. Menos, porém, ao herói individual que ao tipo heróico. Principalmente o tipo heróico em função da paisagem brasileira do centro. O vaqueiro, o sertanejo, o seringueiro, o próprio jagunço. Até mesmo o negro dos sertões - sobrevivência do quilombola colonial - sai engrandecido de suas páginas .

Nesse gosto de fixar tipos heróicos em função das paisagens - ou antes, da "paisagem", para ele como que mística do Brasil mediterrâneo - ninguém o excede. Espera o instante de tensão heróica, o momento extremo de sacrifício ou de agonia, para surpreender no brasileiro anônimo, no sertanejo vulgar, até no caboclo desconhecido, "as linhas terrivelmente esculturais" em que a resistência ao sol, à coragem, à dor, à doença ou simplesmente à fome os alongue em figuras de grandes de Espanha. Exagera então os alongamentos, os ângulos, os relevos. Ao sertanejo, espera quase voluptuosamente que se empertigue, que estadeie todos os seus relevos e todas as suas linhas, que corrija "numa descarga nervosa instantânea todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos" para exaltar na "figura vulgar do tabaréu canhestro" - afidalgada por aquele instante de tensão escultural - "o titã acobreado e potente". Ao cavalo do alferes Vanderlei, surpreende-o morto, com todos os relevos de cavalo ossudo de dom Quixote. Da moça sertaneja alongada pela fome e dramatizada pela dor, que encontra em Canudos, delicia-se em destacar o perfil anguloso: "uma beleza olímpica.... na moldura firme de um perfil judaico, perturbados embora os traços impecáveis pela angulosidade dos ossos apontados duramente no rosto emagrecido...." "Perturbados embora", mas sem essa perturbação, teriam merecido o interesse do estilista obcecado pelo gosto da angulosidade, para ele como que identificada com a altivez, a nobreza, o brio - com ele próprio, Euclides da Cunha?

Mais ainda: de um negro, capanga do Conselheiro, faz um mártir; e um mártir de proporções monumentais que, com música de ópera daria uma figura wagneriana. Coerente com a sua técnica, o seu método, o seu gosto de literatura escultural e de música dramática, espera que o preto desconhecido morra ao laço para o surpreender já "feito estátua" - símbolo de uma raça inteira e expressão de protesto contra quatro séculos de civilização escravocrata. Fixa então o preto em toda a glória de sua "plástica estupenda": "...viriam transmudar-se o infeliz, apenas dados os primeiros passos para o suplício. Daquele arcabouço denegrido e repugnante, mal soerguido nas longas pernas murchas, despontaram repentinamente linhas admiráveis - de uma plástica estupenda. Um primor de estatuária modelado em lama. Retificara-se de súbito a envergadura abatida do negro aprumando-se, vertical e rígida, numa bela atitude singularmente altiva. A cabeça firmou-se-lhe sobre os ombros, que se retraíram dilatando o peito, alçada num gesto desafiador de sobranceria fidalga, e o olhar, num lampejo varonil, iluminou-lhe a fronte Surgiu impassível e firme; mudo, a face imóvel, a musculatura gasta duramente em relevo sobre os ossos, num desempeno impecável, feito estátua, uma velha estátua de titã, soterrada havia quatro séculos e aflorando, denegrida e mutilada, naquela imensa ruinaria de Canudos".

Sente-se aí, como noutros arrojos de síntese do autor d'Os sertões, aquele encanto pela técnica da escultura que ele próprio confessa: "é que a escultura, sobretudo a escultura heróica, tem por vezes a simultaneidade representativa da pintura, de par com a sucessão rítmica da poesia ou da música". Mas para isso - salienta Euclides no seu ensaio "A vida das estátuas" - o escultor - e poderia ter acrescentado: o escritor que imita o escultor na sua técnica - não deve destacar nas figuras "um caráter dominante e especial, senão que também o harmonize com um sentimento dominante e generalizado". A tendência para o monumentalismo que quase nunca o abandona. Da paisagem quase sem relevo dramático nenhum, nem traço monumental dos canaviais da vizinhança de Pojuca ele recorta apenas as "miríades de folhas refletindo ao sol com um brilho de aço antigo"; a casa-grande, mal a observa, desinteressado talvez do gordo, do "terrivelmente chato", do liricamente brasileiro, do acachapadamente patriarcal de sua arquitetura.

Toda a obra de Euclides está cheia de flagrantes de atitudes heróicas oferecidos pelos homens e até pelos animais e pelas árvores nos seus momentos de resistência, de dor, de sacrifício, de fome. Flagrantes surpreendidos pelo olhar arregalado do estilista mais dominado pelo sentido escultural da figura humana e da natureza selvagem que já escreveu no Brasil e talvez em língua portuguesa. Flagrantes e idealizações. Idealizações sob a forma - que chega a sugerir certo narcisismo mórbido - de alongamentos grecóides. Aliás, ele chega a parecer um irmão mais novo e desgarrado na literatura não só de El Greco como de Alonso Berruguete: o Berruguete que na Espanha do século XVI quis exprimir em escultura "toda a força das emoções fundamentais", acentuando a ossatura dos membros, as cabeças das falanges dos dedos, os ligamentos que só o anatomista conhece nas mãos e nos pés dos homens.

A Euclides como que repugnava na vegetação tropical e na paisagem dominada pelo engenho de açúcar o gordo, o arredondado, o farto, o satisfeito, o mole das formas; seus macios como que de carne; o pegajento da terra; a doçura do massapê. Atraía-o o anguloso, o ossudo, o hirto dos relevos ascéticos ou, quando muito, secamente masculinos do "agreste" e dos "sertões". Dos tipos e dos cenários sertanejos, ele destaca os relevos mais duramente angulosos, em palavras também duras, quase sem fluidez nenhuma e como que assexuais. Palavras às vezes enfeitadas de arabescos glorificadores, exageros de idealização monumental, lugares-comuns de geometria oratória: "beleza olímpica", "primor de estatuária", "linhas ideais de predestinado", "olhar, num lampejo viril, iluminando-lhe a fronte". Nunca porém sem seu relevo. Sempre impressionantes e quase sempre vigorosos - de um vigor novo na língua: um vigor escultural.

Porque ele é, na verdade, uma espécie de El Greco ou de Alonso Berruguete da prosa brasileira: tira das palavras o máximo de recursos esculturais, embora com sacrifício, mais de uma vez, de qualidades de discriminação e de inflexão - as grandes qualidades, entre os mestres brasileiros seus contemporâneos, de Machado, de Nabuco e do próprio Pompéia. Qualidades quase impossíveis dentro do gosto do brônzeo, do escultural, do geométrico, do hirto, do anguloso, em que Euclides se requinta como sob o domínio de uma obsessão quase mística: a de evitar a carne, suas curvas, sua inconstância, o momento que passa, a banalidade quotidiana.

Precisamente no Diário de uma expedição, com que o editor José Olímpio iniciou a publicação, em volumes da Coleção Documentos Brasileiros, de crônicas, apontamentos, cartas e até versos do grande escritor brasileiro, inéditos ou dispersos pelos jornais, é que Euclides se revela menos escultural na técnica de escrever e de interpretar tipos e cenários nos seus momentos grandiosos e nos seus aspectos heróicos; e mais fluido, ao mesmo tempo que o menos intolerante do quotidiano.

Porque mesmo nessas notas de repórter ele se mostra o escritor que procura fazer parar as figuras nos seus momentos artística ou, antes, esculturalmente mais expressivos e também mais dramáticos, para os descrever parados e em plena pompa de suas linhas. Que procura fazer parar o próprio sol dos sertões; descrevê-lo como que parado: "reverberando nas rochas expostas, largamente refletido nas chapadas desnudas, sem vegetação, ou absorvido por um solo seco e áspero de grés" num daqueles meios-dias sertanejos "mais silencioso e lúgubre que as mais tardias horas da noite".

As palavras saem-lhe, porém, nas cartas e nas crônicas, mais soltas; e com umas sem-cerimônias, uns à-vontades, uns abandonos que faltam às páginas como que acabadas, completas, definitivas d'Os sertões. Sente-se nas crônicas um gosto diverso do da obra madura e quase monotonamente lapidar: um gosto com a sua ponta de verde, o seu pico de espontaneidade, embora, de modo nenhum, de improvisação.

Porque com o sr. Rosário Fusco - em recente artigo sobre o Diário de uma expedição - e contra o escritor cintilante mas às vezes arrebatado que é o sr. Agripino Grieco, não acredito na improvisação destas notas, muito menos na d'Os sertões: improvisação afetada por Euclides com certa pacholice de dom-juan que ostentasse sucessos fáceis; com certa gabolice de adolescente. O adolescente ao mesmo tempo acanhado e tonitruante, incompleto e enfático, que não morreu de todo no autor de Canudos. Nem no escritor nem, talvez, no homem. Mas isto é outra história, como diria Kipling.

O que desejo salientar aqui e o que me parece ponto inteiramente tranqüilo na personalidade de Euclides da Cunha é "a dificuldade tremenda" que, segundo um observador atento, "ele tinha em redigir". João Luso acompanhou-lhe uma vez a tortura de estilista redigindo com um vagar de quem fizesse renda um artigo para o Jornal do comércio: "levou aquilo mais de três horas para ocupar no dia seguinte um resumido espaço no jornal".

Aliás o próprio Euclides em página do Diário (Bahia, 21 de agosto) confessa, senão a tortura no escrever, o trabalho penoso de recolher dados pelos arquivos baianos: um "investigar constante acerca do nosso passado vindo intacto quase aos nossos dias, dentro desta cidade tradicional como de uma redoma imensa". Acrescentando: "A poeira dos arquivos de que muita gente fala sem nunca a ter visto, surgindo tenuíssima de páginas que se esfarelam ainda quando delicadamente folheadas, esta poeira clássica - adjetivemos com firmeza - que cai sobre tenazes investigadores ao investirem contra longas veredas do passado, levanto-a diariamente. E não tem sido improfícuo o meu esforço". Confissão sincera e até corajosa para uma época em que, mais do que hoje, o "homem de talento" no Brasil devia afetar, acima de tudo, capacidade de improvisação; isso de se sujar de poeira pelos arquivos, entre livros podres e papéis velhos, era só para os medíocres, para os antiquários, para os desembargadores de província. Confissão que, de certo modo, contradiz o bravado de adolescente, em "caderno íntimo" de que o Grêmio Literário Euclides da Cunha, em sua revista, e a revista de estudantes do Recife, Universidade, em seu número de junho de 1938, publicaram trechos curiosos. Inclusive este: "Escrevi-o [Os sertões] em quartos de hora, nos intervalos de minha engenharia fatigante e obscura". No que talvez tenha se baseado o sr. Agripino Grieco para se referir com entusiasmo às cartas enviadas por Euclides da Cunha para O estado de São Paulo: "escritas sem elementos de consulta, na barafunda da campanha, aos primeiros jatos da emoção tumultuosa".

Uma ou outra nota se destaca daquelas cartas pela "emoção tumultuosa" que verdadeiramente acuse a reportagem pura, em vez da estilização pachorrenta. Assim os oitenta soldados feridos que em carta de 12 de agosto Euclides escreve ter visto saltar do trem na estação de Calçada. Ao estilista como que faltou tempo para fazer parar toda aquela gente ferida em figuras esculturais - embora não esqueça de salientar as "apófises dos ossos" a apontarem dos "corpos depauperados" dos "heróis obscuros". Coxeando, arrastando-se, os oitenta soldados desconhecidos saltam do trem e desaparecem, deixando-se apenas esboçar a lápis pelo repórter emocionado, mas como que frustrado nas suas intenções de síntese, quando não de glorificação escultural daqueles homens já tão sem carne: quase só ossos.

É certo que glorificando tipos em estátuas, Euclides raramente sacrifica neles a verdade essencial: quase sempre acentua-a, simplificando-a ou exagerando-a nas linhas das sínteses arrojadas. Mas esse talento o abandona, quase sempre, diante da interpretação das personalidades isoladas e dos próprios tipos sociais mais densos e mais rebeldes à simplificação. E toda vez que se sente fraco diante de problemas complexos de interpretação de personalidades ou de tipos Euclides resvala no seu vício fatal: a oratória.

A uma frase que faça desaparecer de uma personalidade ou de um tipo curvas indecisas, sob o traço único e imperial de uma generalização ou de uma síntese, ele sacrifica às vezes as contradições, as transições, os contrastes que se agitam dentro de um problema complexo e sutil d psicologia ou de história. Principalmente quando esse problema é o que oferece a psicologia ou a história de uma personalidade ou de um tipo social mais denso. Daí a fraqueza de suas tentativas de caracterização da cidade da Bahia, por exemplo, ao lado de suas sínteses magníficas de paisagens largas e de tipos menos complexos: o do sertanejo ou o do seringueiro.

Seus ensaios sobre personagens isoladas, sobre tipos complexos, concentrados no tempo ou no espaço, não têm a força nem a riqueza psicológica dos outros: sobre assuntos menos definidos. Porque ninguém como Euclides ilustra aquele reparo surpreendente mas exato de um crítico: "É mais fácil não nos enganarmos sobre um país inteiro que sobre uma só personagem."

Euclides está cheio de generalizações violentas: mesmo quando faz o elogio da análise. Assim: "Roosevelt é um estilista medíocre.... Não escreve, leciona. Não doutrina, demonstra. Não generaliza, não sintetiza e não se compraz com os aspectos brilhantes de uma teoria; analisa, disseca, induz friamente, ensina." Mas nunca ninguém pretendera exaltar no primeiro Roosevelt o estilista. Nem as demais afirmativas se ajustam ao famoso político americano que não foi nenhum mestre da análise, nem da indução, nem da demonstração fria mas, ao contrário, antes um intuitivo que um lógico; principalmente um voluptuoso da ação; e na expressão literária - se chegou a ter expressão rigorosamente literária - um orador às vezes lamentavelmente enfático. Os mesmos limites Euclides revela diante de personalidades menos distantes: o seu Moreira César, o seu Carlos Teles, mesmo o seu Floriano, nenhum deles tem o vigor ou a verdade do seu sertanejo ou do seu seringueiro.

Outro dos seus contemporâneos, de quem o ensaísta pretendeu fixar a psicologia, ao lado da de Theodore Roosevelt, e fez apenas a caricatura, foi Guilherme II, em frases sonoras que tanto agradariam a Tristão de Araripe Júnior - um crítico literário que lia com os ouvidos e prejulgava com a vista como certos glutões comem com os olhos e prejulgam com o olfato. Frases que não escondem de um leitor menos sensível aos encantos do verbalismo, uma incapacidade surpreendente, em escritor tão poderoso, para a caracterização - neste caso não só do particular, do definido, do único - a personalidade de Guilherme II - como do geral: o povo alemão. Porque é de uma gente da formação delirantemente romântica e até mística do alemão, que Euclides pretende fazer "a terra clássica do bom senso equilibrado"; do Kaiser, isto é, de Guilherme II - um "neto retardatário das Valquírias" que tivesse subjugado, como por mágica, toda aquela massa formidável de "bom senso equilibrado". Frases de orador que lembram expressões pomposas do grande poeta - também turvado pela oratória - que foi Castro Alves. Grande poeta um tanto desdenhado por Euclides ao se confessar atônito ante aquela "espécie de Carlyle da rima" que "nos abala poderosamente em cada verso, mas cuja ação é infinitamente breve, como a de uma pancada percutindo e morrendo ao fim dos hemistíquios".

A Euclides se poderia talvez fazer reparo semelhante ao que ele opôs ao poeta baiano. Em vários dos seus ensaios e em alguns trechos menos felizes d'Os sertões, o lógico, o intuitivo, o poeta dramático e às vezes trágico - raramente lírico - se deixa vencer pelo orador simplesmente impressionante nos seus arrojos verbais e por isso mesmo de "ação infinitamente breve" sobre os quais os que o lêem menos com os ouvidos do que com a inteligência. A inteligência prevenida contra as sínteses sonoras, as generalizações grandiosas, as sentenças maciças, sem um "talvez", sem um "a não ser que", sem um "entretanto" a quebrar-lhes em curvas - curvas irônicas, às vezes irritantes, mas sempre necessárias - a imponência das retas, tão de sua predileção de construtor de frases imperiais .

O professor Afrânio Peixoto já observou de Euclides da Cunha que "não tinha matizes nem inflexões"; que desconhecia "os meios-tons e as transições insensíveis". Pior ainda: que cultivava "esse mau gosto nacional, espécie de gongorismo retardado, que o povo chama, avisadamente, falar difícil". Wagnerismo literário.

Donde aquele seu vício de adolescente de tomar notas nos punhos da camisa de palavras estranhas e arrevesadas, boas para as grandes orgias dos olhos e dos ouvidos. Orgias às vezes masoquistas: palavras duras, termos requintadamente científicos, expressões terrivelmente técnicas que doessem bem nos olhos e nos ouvidos dos voluptuosos, machucando-os e ferindo-os mas deleitando-os.

Noutro, esses defeitos seriam imensos: em Euclides não. Suas qualidades são tão fortes que toleram a vizinhança de defeitos mortais para qualquer escritor menos vigoroso.

Quem nos deixou, como Euclides da Cunha, páginas que saltam intuições verdadeiramente geniais, não precisa de condescendência de crítico algum. O vulto monumental que levantou de Antônio Conselheiro - não da pessoa do místico, mas do seu tipo de sertanejo isolado da civilização do litoral, de vítima desse isolamento, de monge quase mal-assombrado cercado de beatas, de velhas, de doentes, de brancos, de negros, de caboclos, de centenas de brasileiros pervertidos pelo mesmo isolamento que ele, de asceta terrível dando as costas às mulheres moças e às paisagens macias do lado do mar - permanece obra-prima na literatura brasileira. Mais do que isso: obra-prima de síntese sociológica na língua portuguesa. Seus estudos de problemas de formação territorial, social e política do Brasil vieram esclarecer aspectos importantíssimos de nossos antecedentes e da nossa atualidade. Suas caracterizações da paisagem brasileira dos sertões - paisagem física, paisagem cultural - ilumina-as um seguro critério ecológico, ao lado do senso dramático dos antagonismos que turvam a unidade brasileira.

Da história, como da geografia, ele teve a visão mais larga, que é a social, a humana. Seu mestre Carlyle não o afastou do amor fraternal dos homens, simplesmente homens, para o tornar um devoto exagerado dos heróis. Nos heróis como nos jagunços ele nunca deixou de sentir homens; em Antônio Conselheiro, não deixou de ver o brasileiro nem de sentir o irmão. Nos documentos que estudou, que interpretou, que esclareceu foi sempre o que o interessou mais profundamente: a nota humana, a expressão social, a significação brasileira.

Se tivesse hoje vinte, trinta ou quarenta anos, qual seria a posição de Euclides na vida brasileira e diante dos problemas do nosso tempo? Num "ensaio de revisão" é ponto a que dificilmente se pode fugir. A sra. Carolina Nabuco, em conferência, na Faculdade de Direito do Recife, afirmou daquele grande pernambucano - seu pai - na velhice tão olímpico e tão glorificado por todos mas que na mocidade - e mesmo depois dos trinta anos - fora considerado "agitador", "inimigo do clero" e até "republicano" perigoso: "Meu pai, se fosse moço, hoje, certamente advogaria reformas sociais..." Atalhando, porém, com delicadeza de moça e doçura de brasileiro: "...mas nunca insuflando ódios de classe ou agindo com armas que não fossem a própria convicção dos espíritos". E transcreve de Joaquim Nabuco estas palavras que apesar da expressão "futuro remotíssimo" seriam consideradas hoje pela gente mais tomada de pânico diante do socialismo, terrivelmente radicais: "Só há uma coisa certa, é que num futuro remotíssimo, o proprietário de terra será um ente tão mitológico quanto o proprietário de homens. "

Euclides - que escolheu do Brasil e da vida uma "paisagem" tão diversa da de Nabuco - encara o assunto num dos seus ensaios mais eloqüentes - "Um velho problema" - em que se levanta contra o que chama o "egoísmo capitalista" em tom quase de panfletário. É desse trabalho a página pouco original e até rala na idéia mas caracteristicamente euclidiana pelo vigor de expressão - o estilista tira aí todo o partido poético e estético da terminologia físico-química - de confronto do operário moderno - "esverdinhado pelos sais de cobre e de zinco, paralítico delirante pelo chumbo, inchado pelos compostos de mercúrio, asfixiado pelo óxido carbônico, ulcerado pelos cáusticos dos pós arsenicais, devastado pela terrível embriaguez petrólica ou fulminado por um coup de plomb" - com "a máquina... íntegra e brunida". Confronto em que se revelaria "a pecaminosa injustiça que o egoísmo capitalista agrava" e no qual estaria "em grande parte a justificativa dos socialistas não chegarem todos ao duplo princípio fundamental: socialização dos meios de produção e circulação; posse individual somente dos objetos de uso".

Tudo indica que tanto Euclides como Nabuco, se fossem homens de trinta anos diante dos problemas de hoje e no Brasil dos nossos dias, estariam entre os escritores chamados indistintamente da "esquerda", embora nenhum deles fosse por temperamento ou por cultura inclinado àquela socialização da vida ou àquela internacionalização de valores que importassem em sacrifício da personalidade humana ou do caráter brasileiro. Ao contrário: aos olhos dos cientificistas do socialismo eles seriam dois formidáveis românticos, cada qual a seu jeito. Românticos principalmente neste ponto: no respeito pela pessoa humana, a ser defendida contra todos os seus inimigos. Sobre os dois - sobre Nabuco e sobre Euclides - atuaram nesse sentido influências inglesas que não devem ser esquecidas.

Aliás convém salientar que, atraído por afinidades de temperamento e, ao que parece, sob o domínio de tendências ou predileções comuns, o escocês Cunningham Graham traduziu para o inglês, no seu A Brazilian mystic, trechos inteiros d 'Os sertões, alguns dos quais, vertidos àquela língua por um romântico como Graham, nos dão a idéia de terem regressado à sua pátria. No caso, não tanto pátria intelectual, como, em certo sentido, moral, psíquica.

Além do que me parecem evidentes em Euclides da Cunha-o Euclides das cartas sobre a expedição a Canudos - traços de influência daquele tipo profundamente inglês ou escocês, não sei se diga de literatura - o "diário de militar". O diário do militar que cumpre liturgicamente o seu dever de soldado mas não renuncia à sua consciência de protestante inquieto a refugiar-se no "diário" como o católico no confessionário. Quando o protestante é escocês, à necessidade de confessar-se aos outros se junta aquele gosto de frase que um crítico nos diz, em estudo recente, ser o característico de "celta presbiteriano". Euclides, que se sentia não só "tapuia" e "grego" como "celta", talvez pudesse ter acrescentado "celta presbiteriano". Mas nenhuma influência estrangeira que se venha a precisar em Euclides, nenhuma coincidência de orientação, de temperamento, de técnica, de atitude mental ou de consciência que se venha a estabelecer entre ele e mestres europeus, antigos ou seus contemporâneos, afetará no grande escritor a originalidade essencial, feita do profundo brasileirismo e da força incisiva de personalidade que marcam tudo que ele fez e escreveu.

Alega-se, e com razão, que Euclides da Cunha, nos seus ensaios sobre a formação social do Brasil, concede importância exagerada ao problema étnico, parecendo não ter atinado com a extensão e a profundidade da influência da chamada "economia agrário-feudal" sobre a vida brasileira. Ou seja: despreza o sistema monocultor, latifundiário e escravocrata na análise da nossa patologia social; e exalta a importância do processo biológico - a mistura de raças - como fator, ora de valorização, ora de deterioração regional e nacional .

São recentíssimos, aliás, os estudos que vão estabelecendo o primado do fator cultural - inclusive o econômico - entre as influências sociais e de solo, de clima, de raça, de hereditariedade de família, que concorreram para a formação da sociedade brasileira, em geral e, particularmente, para as suas formas agrárias ou pastoris caracterizadas pelo latifúndio, pela exclusividade de produção e pelo trabalho escravo ou semi-escravo, com todos os seus concomitantes psicológicos de agricultura sem amor profundo à terra.

Não nos deve espantar que a Euclides da Cunha-a quem faltavam estudos rigorosamente especializados de antropologia física e cultural ainda mais que os de geologia, nos quais nos informou uma vez Arrojado Lisboa, a mim e a Rodrigo Melo Franco de Andrade, ter o autor d 'Os sertões recebido forte auxílio técnico de Orville Derby - impressionasse de modo particular o aspecto étnico, ou ostensivamente étnico, da geografia humana do Brasil. Nem que, nos seus ensaios resvalasse como resvalou, em mais de uma página eloqüente, no pessimismo dos que descrêem da capacidade dos povos de meio-sangue - ou de vários sangues - para se afirmarem em sociedades equilibradas e em organizações sólidas de economia, de governo e de caráter nacional. Descrença baseada em fatalismo de raça. Em determinismo biológico.

Não é de espantar, porque dos contemporâneos de Euclides da Cunha, o próprio Nina Rodrigues, com estudos especializados de antropologia (e cujo diagnóstico de psiquiatria do caso do Conselheiro, Euclides seguiu muito de perto), não escapou a exageros etnocêntricos na análise e na interpretação da nossa sociedade. Exageros que seriam seguidos por largos anos, quase sem retificação, por vários discípulos do sábio maranhense; e retomados pelo professor Oliveira Viana em obra erudita, publicada depois de 1920, quando no Museu Nacional já se esboçara, com Lacerda, a tendência, depois acentuada pelo professor Roquete Pinto, no sentido de reabilitar-se experimentalmente o mestiço brasileiro, vitima de preconceitos cientificistas com aparência de verdades antropológicas.

Tais preconceitos foram gerais no Brasil intelectual de 1900: envolveram às vezes o próprio Sílvio Romero, cuja vida de guerrilheiro de idéias está cheia de contradições. Só uma exceção se impõe de modo absoluto: a de Alberto Torres, o primeiro, entre nós, a citar o professor Franz Boas e suas pesquisas sobre raças transplantadas. Outra exceção: a de Manuel Bonfim, turvado, entretanto, nos seus vários estudos, por uma como mística indianista ou indianófila semelhante à de José de Vasconcelos, no México.

Daí não nos surpreender o pendor melancólico de Euclides para o fatalismo de raça. Aquele seu - "ante as conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sobre o produto o influxo de uma raça superior, repontam vivíssimos estigmas da inferior... de modo que o mestiço é, quase sempre, um desequilibrado... um decaído sem a energia física dos ascendentes selvagens, sem a altitude intelectual dos ascendentes superiores" (Os sertões, 3a ed., p. 109) é bem característico dos seus momentos de fatalismo étnico. Vê-se que Euclides da Cunha se viu às vezes arrastado pelo que considerava a antropologia científica na sua expressão única e definitiva, a acreditar na incapacidade do mestiço: incapacidade biológica, fatal.

Mas o certo é que não se extremou em místico de qualquer teoria de superioridade de raça. O perfil que traça do sertanejo não é de um devoto absoluto de tal superioridade. Nem é fácil de conceber que um homem como Euclides da Cunha, animado do culto da personalidade humana tanto quanto do entusiasmo pelos planos arrojados de socialização dos grupos regionais ou nacionais, pudesse ser hoje o etnocentrista desdobrado em totalitarista que entrevêem nele alguns críticos de belas-letras, para quem a caracterização psicológica dos indivíduos e dos povos é um jogo fácil, ao sabor de caprichos de momento ou de entusiasmos doutrinários de ocasião.

Em Euclides da Cunha, o pessimismo diante da miscigenação não foi absorvente. Não o afastou de todo da consideração e da análise daquelas poderosas influências sociais a cuja sombra se desenvolveram, no Brasil, condições e formas feudais de economia e de vida já mortas na Europa ocidental; traços aparentemente cacogênicos mas, na realidade, de patologia social, que o isolamento de populações, no sertão e mesmo nas proximidades do litoral, conservaria até os nossos dias. Aqueles fazendeiros de sertão que o escritor conheceu a usufruírem "parasitariamente as rendas das terras dilatadas, sem divisas fixas", eram bem o prolongamento, no espaço e no tempo, dos sesmeiros da colônia. Uns e outros, senhores de escravos ou de semi-escravos "perdidos nos arrastadores e mucambos". Semi-escravos, os dos sertões, "cuidando a vida inteira, fielmente, os rebanhos que lhes não pertencem". (Os sertões, 3a ed., p. 122.)

Aliás, é possível que o movimento messiânico de Antônio Conselheiro tenha tido alguma coisa da revolta de oprimidos, entrevista apenas por Euclides. Foi assim que Canudos ficou para a opinião européia mais aguçada no diagnóstico de revoluções exóticas: como revolta de classe oprimida. A resenha do Hachette, de Paris, para o ano de 1897, pode ser considerada típica daquele diagnóstico quando faz do Conselheiro - um dos raros sul-americanos que alcançaram então fama mundial - curiosa figura de profeta que pregava "le communisme en même temps que le rétablissement de la monarchie..."

O aspecto "comunista" e ao mesmo tempo "monarquista" encontra-se noutros movimentos brasileiros do século XIX, classificados vagamente como surtos de misticismo doentio entre grupos isolados: sertanejos do Nordeste, restos de quilombolas, "fanáticos" do Contestado, europeus mal assimilados pela civilização brasileira do litoral. Entre os últimos, os colonos alemães e os descendentes de alemães que, ainda sob a monarquia, esboçaram, perto de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, o seu Canudos ou a sua Pedra Bonita, o seu Quebra-Quilos ou a sua guerra de Cabanos, tendo por profeta uma mulher: Jacobina Mentz E por ideal de organização social, certo comunismo cristão a que talvez não fossem estranhos sugestões dos mórmons e restos de influência da tentativa de colonização socialista do dr. Mure, em Santa Catarina .

O próprio aspecto de sebastianismo político do movimento de Canudos - exagerado na época pelos devotos da República mas desprezado hoje pelos estudiosos daquele capítulo dramático de história brasileira - está a pedir a atenção de algum pesquisador mais pachorrento que se disponha a acompanhar - tarefa difícil - a atividade de agentes ou de simples amadores da restauração monárquica no nosso país, nos fins do século passado e nos começos do atual. Agentes ou amadores a quem a revolta do Conselheiro talvez tenha se apresentado como forca de fácil utilização política. Tais agentes e amadores não só existiram como atuaram, às vezes inteligentemente, a favor de sua causa. E sua atividade - se não francamente política, de sondagem pré-política das condições brasileiras e de colheita de dados para o que se pode hoje denominar de economia ou sociedade planificada dentro da concepção monárquica de reorganização da vida nacional (pois a tanto se estendeu o preparo para a restauração do Império no Brasil na pessoa do príncipe dom Luis, a quem não faltavam idéias moderníssimas de governo junto com o senso político, o gosto de ação e o entusiasmo pelas coisas brasileiras) - foi até ao interior do Brasil. Foi até ao estudo meticuloso e literalmente germânico de zonas remotas que somente agora estão interessando de novo aos responsáveis pela política e pela administração do nosso país. E foi até a tentativas francas ou sutis no sentido de atrair grandes intelectuais do Brasil para a causa monárquica. Tentativas que alcançaram Oliveira Lima - que chegou a ser convidado pelo príncipe para ministro das Relações Exteriores de um possível governo monárquico que da noite para o dia se estabelecesse no Rio de Janeiro - e se estenderam, de modo muito vago, ao próprio Euclides.

Admitido o aspecto vagamente político de Canudos - aquela mistura de "comunismo" com "monarquismo" - a verdade é que o movimento do Conselheiro foi principalmente um choque violento de culturas: a do litoral modernizado, urbanizado, europeizado, com a arcaica, pastoril e parada dos sertões. E esse sentido social e amplamente cultural do drama, Euclides percebeu-o lucidamente, embora os preconceitos cientificistas - principalmente o da raça - lhe tivessem perturbado a análise e a interpretação de alguns dos fatos da formação social do Brasil que seus olhos agudos souberam enxergar, ao procurarem as raízes de Canudos.

A mesma lucidez afastou-o da exagerada idealização da atividade missionária e política dos jesuítas - organizadores de outros Canudos - na formação brasileira. Idealização a que se entregaram com toda a alma Joaquim Nabuco e Eduardo Prado. A Euclides foi preciso ter havido o Anchieta - o mesmo Anchieta no qual os historiadores oficiais da expansão inaciana no Brasil colonial recusaram-se a enxergar a figura máxima daqueles dias, do ponto de vista jesuítico - para que ele, Euclides da Cunha, se sentisse reconciliado com a Companhia de Jesus. Mas não nos antecipemos sobre este ponto.

Além de Orville Derby - que segundo Arrojado Lisboa teria fornecido a Euclides da Cunha notas valiosas sobre a geologia do Brasil (assunto em que o sábio norte-americano naturalizado brasileiro era mestre)- o autor d 'Os sertões teve em Teodoro Sampaio não só um colaborador mas um orientador no estudo de campo de geografia e de história geográfica e colonial do Nordeste; e talvez - me aventuro a acrescentar - um tradutor de trechos mais difíceis da língua inglesa, em cujo conhecimento parece que Euclides da Cunha era patrioticamente fraco. No seu "Terra sem história" (À margem da história, 1908, p. 21) surpreendo-o a traduzir drinking, gambling and lying por "bebendo, dançando, sambando". Tradução demasiado livre.

Um critico baiano, o sr. Carlos Chiacchio, destacou há pouco, em sugestivo ensaio - Euclides da Cunha, aspectos singulares (Bahia, 1940) - o auxilio prestado ao escritor d 'Os sertões por aquele seu amigo e, em certo sentido, mestre de geografia e de história - tanto quanto Orville Derby de geologia: Teodoro Sampaio. O próprio Sampaio recordara, em artigo para a Revista do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia (Bahia, 1919, p. 252): "Levou-me [Euclides] algumas notas que eu lhe ofereci sobre as terras do sertão que eu viajara antes dele em 1878. Pediu-me cópia de um meu mapa ainda inédito na parte referente a Canudos e vale superior do Vaza-Barris, trecho do sertão ainda muito desconhecido, e eu lho forneci. . . " E para Sampaio é que Euclides da Cunha foi lendo depois, aos domingos, "os primeiros capítulos, os referentes à natureza física dos sertões, geologia, aspecto, relevo", escritos "naquela sua caligrafia minúscula". Poupou, talvez, ao mestre de geografia a leitura das páginas mais acres de pessimismo sobre os povos híbridos. Pedira ainda Euclides a Teodoro Sampaio "apontamentos históricos", que - diz Sampaio naquele seu artigo - "eu assim como os possuía, enfeixados em cadernos de notas, de bom grado lhos fornecia, resultando disso, por acaso, esse manuscrito da lavra de nós ambos que o instituto hoje possui, isto é, notas distribuídas em capítulos por mim escritos na primeira parte do livro, observações outras da lavra de Euclides, feitas com a mesma letra miudinha que ambos adotávamos para simples anotações". Das notas de Teodoro informa o sr. Carlos Chiacchio que se referem a "cartas régias, roteiros, alvarás, crônicas de jesuítas, biografias, manuscritos coloniais, múltiplos veeiros, em suma, codificados em Casal, Accioly, Pedro Taques, Araújo Porto Alegre, Alexandre Rodrigues Ferreira, pesquisas e documentos de institutos, bibliotecas, arquivos de Rio e Bahia, tudo isso esmerilhado, escoldrinhado, loteado e recolhido não em um ou dois ou três anos de afogadilho mas longamente, metodicamente, pertinacissimamente".

Juntando-se a colaboração do paciente pesquisador de geografia física e humana e de história colonial do Brasil que foi Teodoro Sampaio à do geólogo Orville Derby e, ainda, à orientação do psiquiatra Nina Rodrigues quanto ao diagnóstico do Conselheiro e dos fanáticos de Canudos o próprio esforço de pesquisa de Euclides nos arquivos da Bahia, e, de campo, no interior do estado, vê-se como é precária a posição dos que ingenuamente exaltam n'Os sertões um livro improvisado. Nem improvisado nem fácil. Nem tampouco caprichosamente individual, de quem tivesse se retraído dos especialistas seus amigos ou conhecidos para escrever sozinho um livro de tamanha complexidade.

Nas suas pesquisas de técnico, no extremo Norte, Euclides da Cunha teve outro bom colaborador, este seu primo e, como Teodoro, amigo íntimo: o engenheiro Arnaldo Pimenta da Cunha.

Do então jovem engenheiro Pimenta da Cunha é que escreveu a José Rodrigues Pimenta da Cunha - pai de Arnaldo e tio de Euclides - o médico da Comissão de Reconhecimento do Alto Purus: "A parte técnica da comissão foi muito principalmente obra sua. Foi talvez o anjo tutelar do chefe. . . " De modo que colaborações técnicas de amigos não faltaram ao grande escritor.

É de Euclides esta caracterização de sua própria vida: "romance mal arranjado". Nesse "romance mal arranjado" um dos seus maiores consolos foi decerto o da amizade. Amizade que mais de uma vez se estendeu em colaboração ou em auxílio técnico dos amigos - dos mais jovens como dos mais velhos - nas pesquisas e nos trabalhos necessários a ensaios de modo nenhum improvisados. Raro o escritor, o artista ou o cientista que tenha tido amigos e colaboradores tão bons como os que Euclides da Cunha teve na Bahia e no Amazonas, em São Paulo e no Rio.

Nas suas viagens de aventura científica, à saudade dos filhos se juntou sempre a dos amigos: "as imagens dos amigos constantemente evocadas e cada vez mais impressionadoras à medida que se aumentam as distancias". E aos amigos - diz numa carta a Oliveira Lima - aos amigos "elejo-os sempre incorruptíveis confessores desta minha vida". A Vicente de Carvalho escreve meses antes de ser assassinado no Rio: "Tranqüiliza-me, homem! Imagina as atrapalhações em que vivo...."

O crítico baiano Carlos Chiacchio me parece acertar na interpretação da angústia de Euclides da Cunha, já fixada pelo sr. Elói Pontes, num livro que é um esforço admirável de reconstituição da personalidade do autor d 'Os sertões: a falta de um amor. Angústia atenuada pela constância dos amigos e pelos encantos da aventura científica nos ermos: "o meu deserto, o meu deserto bravio e salvador.... o sertão.... e a vida afanosa e triste de pioneiro". E não a "Europa, o bulevar, os brilhos de uma posição". O que não o impediu de ter pensado muito na Europa - que teria sido para ele outra espécie de ermo. Nem de se apresentar candidato à Academia Brasileira de Letras.

Sente-se, na sua correspondência, que Euclides da Cunha procurou em vão a imagem que prolongasse na sua vida de adulto triste a da mãe morta quando ele tinha apenas três anos; e idealizada pelo órfão numa espécie de Nossa Senhora das suas dores de menino, das suas esperanças de adolescente, dos seus sonhos de adulto mal definido. Cuidou encontrar a imagem ideal na "República" - para ele e para o seu quixotismo quase pessoa, quase mulher, quase Dulcinéia: tanto que a confundiu com a figura de moça que mais o impressionou na mocidade. Mas a confusão durou pouco. A identificação do símbolo com uma figura particular de mulher não foi além do seu desejo. Nem era possível que esse sonho de homem romântico e talvez neurótico tivesse inteira realização.

Daí o narcisismo confundido com o apego à figura ideal de mulher que parece o ter acompanhado sempre: até em visões sob a forma de um "vulto branco de mulher" (Coelho Neto), de uma "dama branca" (Firmo Dutra), de uma mulher "de asas abertas, ora descerrando reposteiro escuro e pesado, em salão de luxo, vestida de túnica, ora envolvida em levíssimas vestes, toda de alvo, igualmente com asas, munida de trombeta e já agora numa espécie de bosque" (A. Pimenta da Cunha). Narcisismo, o seu, deformador de sua visão da natureza e dos homens dos sertões. Deformador, porém, no sentido de acentuar a realidade congenial. No sentido de estilizá-la. Deformador no sentido profundamente realista da arte só na aparência violentamente mórbida de El Greco.

Como tantos brasileiros do tempo do Império - o próprio imperador, talvez - e dos seus dias de homem feito - parece que o próprio Rio Branco - Euclides da Cunha foi um indivíduo que nunca se completou em adulto feliz ou em personalidade madura e integral, a quem a colaboração doce e inteligente, ou simplesmente a inspiração constante de uma mulher, tivesse acrescentado zonas de sensibilidade, de compreensão e de simpatia humana, que o homem sozinho não percorre senão angustiado; ou não percorre nunca.

É possível que do incompleto de sua vida tenha resultado o enriquecimento de sua obra e da nossa literatura, pela exploração e intensificação de zonas particularíssimas de sensibilidade e de compreensão da natureza e do homem tropical. Afinal, não é uma frase de efeito a que atribui à angústia, ou ao desajustamento do indivíduo ao meio, um singular poder criador. Aos homens de gênio como Robert Browning - que completado pela sua querida Ba foi o equilíbrio, a saúde, a alegria, a sociabilidade, a felicidade em pessoa - se opõem, mesmo fora do Brasil terrivelmente monossexual na sua formação, exemplos de indivíduos que produziram grandes obras à sombra de angústias enormes a eles impostas pela falta ou pelos erros de amor. Nos seus desajustamentos, como que se desenvolveram condições favoráveis à produção de obras intensas de arte, de ciência e de pensamento. Mas esses exemplos não nos devem fazer esquecer os daqueles que completos, integrais e felizes é que produziram grandes obras: obras de valor permanente e de significação universal. Esses são os grandes homens completos.

Euclides quase nada teve desses homens completos, bem equilibrados e saudáveis, de que Nabuco foi, no Brasil, uma expressão magnífica. O autor d'Os sertões foi um homem com uma grande dor, nem sempre disfarçada nas cartas aos amigos nem nos livros que escreveu. Retraído e calado, era um indivíduo triste para quem a vida tinha poucos encantos; a quem o mundo oferecia raras alegrias. Natural, portanto, que não gostasse de Nabuco: o Nabuco bonito, elegante, mundano, afrancesado, idéias e roupas à inglesa, que lhe parecia artificial tanto que numa de suas conversas com Oliveira Lima - dom Quixote gordo, com quem seu quixotismo de magro tinha tantas e tão profundas afinidades - comparou o autor de Minha formação a um "ator velho". Pelo menos a voz: voz de ator velho. Por sua vez Nabuco achava que Euclides como que escrevia com um cipó.

O brasileirismo intensamente concentrado, retorcido e agreste de Euclides da Cunha se apresenta melancolicamente incompleto em suas expansões e em suas afirmações. Ele foi o "celta", o brasileiro, o baiano raro que não riu: ou riu tão raramente que nunca o imaginamos rindo nem mesmo sorrindo. Ao contrário do brasileiro típico - isto é, o típico em cuja composição entrasse a quase totalidade dos subtipos regionais - não foi nenhum "homem cordial", de riso fácil e gestos camaradescos; nem nenhum guloso de mulheres bonitas ou simplesmente de mulheres, do gênero que se extremou em Maciel Monteiro e se vulgarizou em Pedro I, a quem as próprias molecas interessavam. Nem mesmo um simples guloso de doces, de bons-bocados, de quitutes feitos em casa. Varnhagen cozinheiro e Rio Branco regalão, curvados em mangas de camisa sobre alguma peixada à brasileira, devem lhe ter parecido ridículos. Varnhagen quituteiro - ridículo e até desprezível para a sua masculinidade convencional de he-man e para a sua temperança de caboclo ou "tapuio".

Teodoro Sampaio contou-me urna vez - por sinal que à sobremesa de um excelente jantar de peixe de coco em casa de Aníbal Fernandes, organizado e presidido pela artista ilustre do tempero e não apenas da pintura que é dona Fedora - que Euclides da Cunha era a tortura das donas-de-casa. Traço da personalidade do grande escritor que aquele seu mestre e amigo baiano já registrara em artigo na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (p. 253): "À mesa o Euclides era um torturado a quem as iguarias faziam mais medo do que as carabinas da jagunçada revolta. Comer fosse o que fosse era-lhe um tormento, por mais inocente que lhe parecesse a iguaria e isso notei-lhe sempre, antes como depois de sua visita a Canudos." E ainda: "Não tinha prazer à mesa, onde se assentava, de ordinário, conviva taciturno e desconfiado e neste estado de espírito tudo lhe servia de escusa aos obséquios e oferecimentos. - Que é que se há de oferecer a Euclides? Era a pergunta da dona da casa toda vez que se aguardava a visita do autor d'Os sertões. E o Euclides, a bem dizer, só se considerava tranqüilo à mesa, quando nada via de especial a se lhe oferecer."

Nem moças bonitas, nem danças, nem jantares alegres, nem almoços à baiana, com vatapá, caruru, efó, nem feijoadas à pernambucana, nem vinho, nem aguardente, nem cerveja, nem tutu de feijão à paulista ou à mineira, nem sobremesas finas segundo velhas receitas de iaiás de sobrados, nem churrascos, nem mangas de Itaparica, abacaxis de Goiana, açaí, sopa de tartaruga, nem modinhas ao violão, nem pescarias de Semana Santa, nem ceias de siri com pirão, nem galos de briga, nem canários do Império, nem caçadas de onça ou de anta nas matas das fazendas, nem banhos nas quedas-d'água dos rios de engenho - em nenhuma dessas alegrias caracteristicamente brasileiras Euclides da Cunha se fixou. Nem mesmo no gosto de conversar e de cavaquear às esquinas ou à porta das lojas - tão dos brasileiros: desde a rua do Ouvidor à menor botica do centro de Goiás. Principalmente dos baianos - dos quais Euclides procedia, embora sua personalidade se enquadre menos no tipo regional do baiano do Recôncavo que no do sertanejo. "Raro na palestra se animava" - é a informação que nos dá, a esse respeito, Teodoro Sampaio, que acrescenta: "Não era verboso, nem álacre, nem causticante no discretear ordinário. Preferia pensar, refletir, ouvir antes que dizer, o que traía natural propensão mais para colher do que para dispartir as jóias do seu espírito."

Aqui se impõe um esclarecimento: causticante, Euclides da Cunha o era, e muito; parente, na mordacidade, daquele outro caboclo retraído mas bisbilhoteiro a seu jeito de songamonga, Capistrano de Abreu, do qual já se disse que se todas as suas cartas fossem publicadas dissolvia-se a Sociedade Capistrano de Abreu, Euclides foi às vezes terrível nessa outra forma de "discretear ordinário" que é a carta, a conversa, o gossip com o amigo distante, a correspondência. Que sirvam de amostra alguns trechos de cartas suas a Gastão da Cunha, conservadas no arquivo do diplomata mineiro, do qual Rodrigo M. F. de Andrade, em transcrições publicadas em 1926, n'O jornal, nos deixou entrever a natureza vulcânica. Esse pendor para o comentário vivo, às vezes agreste e até cruel às figuras do dia, não se manifesta sempre na correspondência de Euclides, da qual Venâncio Filho publicou recentemente, em livro, trechos interessantes. É nas cartas mais íntimas a amigos também causticantes - como Oliveira Lima e o já referido Gastão da Cunha - que o pendor de Euclides para aquela espécie de comentário ou de cavaco mais cru melhor se revela.

Como todo estudioso da formação brasileira, Euclides da Cunha teve de defrontar-se com a figura do missionário jesuíta e com a vasta obra de arquitetura social da Companhia de Jesus na América. Saliências da nossa história de uma sedução particular para quem tinha, como Euclides, a obsessão quase bizantina do escultural e, em arquitetura - material ou moral - o gosto dos arrojos verticais. E nesses arrojos o missionário jesuíta na América portuguesa excedeu ao colonizador. Quer nos seus planos, em parte realizados, de construção intelectual de elites e de segregação de indígenas dispersos, quer no sentido concretamente arquitetônico de edificações de pedra e cal, logo que lhes foi possível o emprego de material nobre no levantamento de igrejas e colégios.

No colonizador português o sentido de construção quase sempre se contentou com o "terrivelmente chato" da arquitetura "feia mas forte" das casas-grandes do interior e dos sobrados do litoral. Sentido que se exprimiu no horizontal monótono mas sólido que caracteriza as linhas da nossa chamada arquitetura colonial de preferência ao vertical dos palácios de Lima e das catedrais da América espanhola.

Não foi, entretanto, por influência dessas suas predisposições acentuadas para a admiração dos arrojos verticais de construção - quer no sentido real, quer no figurado - que Euclides se deixou "reconciliar" com a Companhia de Jesus, cuja história européia, lida talvez superficialmente, tanto lhe repugnara. E aqui nos surpreende o paradoxo que marca o humanismo do escritor a prevalecer sobre o seu verticalismo de geômetra: a "reconciliação" se operou através da figura lírica de Anchieta - o menos típico daqueles jesuítas dramáticos que enchem a história do Brasil de uma gravidade mais castelhana do que portuguesa. O menos dramático e o mais lírico. Foi entretanto o suficiente para que Euclides da Cunha descobrisse na Companhia de Jesus na América a negação maciça de sua ação na Europa, para ele repugnante nos aspectos políticos:




"Incoerente e sombria, pregando, no século XVI, exageradamente, através da justificação singular da estranha teoria do regicídio de Mariana, a soberania do povo, e combatendo, aliada aos tronos, essa mesma soberania quando surgia triunfante no século XVIII; precipitando ora os reis sobre os povos, ora os povos sobre os reis; traçando, através da agitação de três longos séculos atumultuados, os meandros de espantosas intrigas - ela foi, na América, coerente na missão civilizadora e pacífica, seguindo a trajetória retilínea do bem, heróica e resignada, difundindo nas almas virgens dos selvagens os grandes ensinamentos do Evangelho." ("Anchieta", em Contrastes e confrontos, 3a ed., p. 128.)




O trecho é bem característico de Euclides da Cunha orador: passa de repente do tom quase maçônico de inimigo da companhia ao de panegirista da obra do jesuíta na América. Mas mesmo assim - repito - a generalização enfática nos deixa ver um Euclides superior, neste particular, em lucidez crítica, àqueles dois ensaístas seus contemporâneos - Joaquim Nabuco e Eduardo Prado - ainda mais que o autor d'Os sertões turvados, em algumas de suas páginas mais famosas de evocação do passado brasileiro, pela exaltação sentimental do missionário da S. J. ou pelo ardor apologético de entusiastas da companhia.

Há evidentemente nas páginas comovidas de Euclides sobre Anchieta o desejo de "fixar em bronze" - sempre o artista a querer pôr a estatuária simplificadora a serviço das complexidades da história ou da biografia - a figura enternecedoramente lírica do padre mestiço, que o escritor d'Os sertões - contra interpretações mais autorizadas e melhor documentadas - considerou típica dos ideais e da ação missionária dos inacianos no Brasil. E bem pouco do animo ou do espírito tranqüilamente crítico diante daqueles ideais e daquela ação em suas relações com o desenvolvimento do Brasil em nação mestiça e em cultura plural. Ânimo ou espírito de que se encontram melhores evidências noutros trabalhos do autor de A margem da história.

Não se compreenderia, aliás, dentro da crítica psicológica dos processos de acomodação de antagonismos sociais e de cultura (crítica que se mostra tão útil em completar a simplesmente histórica dos atos humanos), exceção tão considerável como a que Euclides sugere para a ação da companhia na América. Sociedade diversa na sua técnica de catequese e de política - uma na Europa, outra no Oriente, ainda outra na América - a Companhia de Jesus foi, e é ainda, por toda a parte, a mesma nos seus fins corajosamente militantes e agudamente combativos a favor de uma ortodoxia católica definida quase sempre a seu jeito pelos seus próprios e vigorosos teólogos; sempre a mesma, também, nos seus esforços de absorção de prestígio dentro e fora da Igreja. Esforços que no Brasil, como noutros países da América, levaram a companhia a conflitos com os governos, com o próprio rei, com os bispos, com as outras religiões ou ordens. E as "missões" ou "reduções", cuja sombra de obra monumental ainda hoje se projeta sobre a paisagem e a cultura do extremo Sul do Brasil, dificilmente podem ser apresentadas como exemplo de técnica persuasiva de evangelização e de método de assimilação lenta de uma cultura por outra.

Ao contrário: nelas se antecipou, do ponto de vista de pura experimentação sociológica de formas, a técnica moderna de sujeição por todos os meios - inclusive a reeducação da gente grande através das crianças - de grandes massas humanas a determinados modos de vida e a estilos improvisados de associação e de arte considerada social; de rápida arregimentação das massas em grupos operosos de artífices. Artífices quase sem tradições de grupo, por um lado, e sem espontaneidade individual na sua expressão artística e religiosa, por outro: a pessoa de cada um sacrificada ao interesse considerado geral; e esse interesse imposto quotidianamente ao todo pelos executores da ortodoxia sociológica desdobrada da teológica.

A "história dolorosa das reduções jesuíticas" a que se refere Euclides - tomando vicariamente por um instante as dores do indígena do qual ficou até hoje o grito romântico: "me mata mas não me reduz" - é, ainda, um capítulo a escrever na história antropológica dos primeiros contatos dos europeus com os ameríndios; e também um capítulo na história das grandes experiências sociológicas não só de economia como de cultura dirigida. E quando esse difícil capítulo da história da cristianização da América e da socialização do mundo moderno for escrito, é possível que se confirme a sugestão esboçada aqui: nas "reduções", os jesuítas se anteciparam em métodos de arregimentação de massas, empregados na civilização rápida de povos chamados naturais - métodos verdadeiramente admiráveis, na sua pureza técnica, como esforços de ordenação externa e até certo ponto interna da vida - a modernos experimentadores da Europa.

A atualidade da técnica dos jesuítas das "reduções" é vivíssima: na América eles tentaram há três séculos, com povos primitivos, o que agora se tenta na Europa com povos de cultura avançada. É certo que para Euclides da Cunha o resultado da obra jesuítica das "missões" ou "reduções" foi "matar", pelo menos, um povo: o paraguaio (À margem da história, p. 342). Conclusão que me parece tão exagerada quanto, no sentido contrário, aquela outra já citada: de que na América os jesuítas só fizeram seguir "a trajetória retilínea do bem", tendo sido todos uns Anchietas cândidos e seráficos.

Na história das grandes experiências sociais no sentido da planificação maciça da vida humana, os padres da companhia - repita-se - têm lugar de relevo entre os pioneiros, pela obra realizada na América com um vigor que muitas vezes contrariou o desenvolvimento do Brasil na nação mestiça e na cultura plural e democrática que é hoje: mas que foi, entretanto, obra monumental; e não só de destruição como de ordenação de vida. Mostraram aqueles padres - talvez mais "mágicos" do que "lógicos" - três séculos antes de Pareto, de Sorel, de Marx, o que se pode conseguir pela violência inteligentemente empregada e pela utilização de novos mitos, no sentido da despersonalização de homens e da sua socialização rápida. Uma experiência de enorme interesse para as ciências sociais. Pede um estudo à parte.

Vários críticos modernos, especializados no trato mais jornalístico do que científico de assuntos sociológicos e políticos, ao comentarem organizações atuais da Europa, não hesitam em filiá-las, talvez com precipitação, à tradição do método jesuítico de ação dissimulada e sinuosa, mas penetrante e eficaz (tradição limitada arbitrariamente por Euclides da Cunha à história européia da companhia): tal o caso de Elizabeth Wiskemann, em recente artigo no The spectator, de Londres (12 de janeiro de 1940), intitulado "The Jesuits to-day". E o professor Harold Laski, cujo nome reúne à responsabilidade de escritor a de mestre respeitado, em universidades inglesas e americanas, de direito público, no livro Communism (Home University Library, 1927), compara os comunistas russos, no seu uso alternado de persuasão e de força externa, com os jesuítas. Com os jesuítas na Espanha e com os jesuítas na América do Sul.

A verdade é que os S. J. na América do Sul não foram todos os homens cândidos da generalização de Euclides da Cunha, mas, vários deles, astutos e sutis; e alguns duros e até violentos. Dificilmente se imagina um Antônio Vieira - intrigante como ele só e tipo por excelência do "diplomata secreto", tantas vezes às voltas com hereges e em confabulações quase idílicas com judeus ricos de que o historiador João Lúcio de Azevedo pode surpreender traços interessantíssimos - dentro da classificação de "cândido misticismo". Nem era tão cândido o próprio Anchieta que desconhecesse a necessidade realisticamente pedagógica de empregar no trato com os índios do Brasil e na sua educação a palmatória ou a vara.

A ação da Companhia de Jesus na América colonial - e dizemos na América porque ela primou em ser transnacional, na América do Sul identificando-se de preferência, mas sempre de acordo com suas necessidades e aspirações, com o interesse espanhol, contrariando mais de uma vez o dos portugueses - é fenômeno diante do qual o estudioso ou o observador encontra hoje imensa dificuldade em conservar-se calma e objetivamente crítico. Nada mais ridículo nem mais irritantemente vulgar que a atitude dos que, em face da capacidade revelada pelo jesuíta, na América como na Europa e no Oriente, para levantar obras verdadeiramente monumentais, se fecham maçonicamente a toda admiração que o esforço extraordinário dos padres da companhia desperta. Mas no Brasil o extremo oposto é que tem prevalecido; de modo que o menor esboço de crítica à ação jesuítica entre nós - crítica histórica completada pela crítica psicológica - ou a menor tentativa de interpretação sociológica daquele esforço, ainda que simpática à companhia e até impregnada de admiração pelos seus grandes missionários, toma o ar de um ataque ou de uma oposição sistemática à S.J.

De Euclides da Cunha não se pode dizer que, no seu artigo cheio de ternura por Anchieta, nos tenha deixado um esboço sequer de interpretação crítica da Companhia de Jesus nas suas relações com o Brasil, com o ameríndio, com o mestiço, com o africano. Nada que se aproxime da análise iniciada por Gonçalves Dias, o indianista de quem o exagero indianófilo fez um agudo observador da ação jesuítica na América lusitana, sensível aos aspectos - geralmente esquecidos - da opressão do índio em algumas das "missões" e de sua artificialização em cristãos in vácuo.

Análise esboçada na obra em que o poeta maranhense revelou cultura científica ao lado de uns começos de humanismo sociológico e de um brasileirismo amplamente cultural - e não apenas político ou estreitamente cívico - surpreendentes para a época. Dentro de semelhante orientação, teria de encontrar, como de fato encontrou, aspectos da obra jesuítica em conflito com os interesses autenticamente brasileiros de organização social democrática e de cultura pluralista.

É pena que justamente o manuscrito do estudo especializado de Gonçalves Dias sobre os jesuítas no Brasil tenha desaparecido. Mas o que nos deixou a respeito daqueles missionários e de suas relações com os indígenas é fortemente sugestivo. O maranhense se antecedeu a Euclides na fixação de pontos de partida importantes para o estudo do pluralismo cultural brasileiro, cujo inicio o jesuíta, com seus planos de segregação de uma raça inteira para seu aperfeiçoamento em devotos da companhia, contrariou poderosamente, ainda que sob a influência de boas e piedosas intenções evangélicas.

Logicamente é quem devia ter continuado o trabalho de Gonçalves Dias, sobre as relações dos missionários com os indígenas: Euclides da Cunha. O trabalho de Gonçalves Dias e o de Couto de Magalhães. Não o continuou. Deixou-nos, apenas, sobre o assunto, alguns reparos críticos de rara lucidez, entre generalizações perigosamente enfáticas. Não digo reparos de absoluta objetividade porque Euclides da Cunha tinha o seu ponto de vista: o da formação brasileira. E o ponto de vista é, num estudioso de assunto histórico - social, aquele "aspecto subjetivo" da definição de Farris da personalidade com relação à cultura.

A história da Companhia de Jesus no Brasil não se fará nunca, sem que à obra de um padre Serafim Leite - notável pela abundância de sua documentação, reunida, selecionada e interpretada do ponto de vista jesuítico - corresponda o alongamento e o aprofundamento dos estudos de Gonçalves Dias, Couto de Magalhães e João Lúcio de Azevedo. Entre esses estudos, as páginas de Euclides ligadas ao assunto vivem pela intensidade do "são brasileirismo" que as anima. "São brasileirismo" creio que para o criador da expressão - Sílvio Romero - terá incluído "espírito crítico"; e este nem nas páginas mais subjetivas, pessoais e nacionalistas do autor d 'Os sertões, desaparece de todo. É o que explica o fato do enternecimento pela figura de Anchieta não ter feito dele o louvador sem discriminação nem reserva do jesuíta na América que foi Eduardo Prado.

Aliás, a própria atitude dos que hoje se aproximam do assunto do ponto de vista jesuítico mas com espírito crítico e, tanto quanto possível, científico - o caso do erudito autêntico que é o padre Serafim Leite - já se vai tornando, em Portugal e no Brasil, aquela atitude de discriminação característica de toda análise de história social orientada cientificamente. Digo em Portugal e no Brasil, porque noutros países semelhante atitude já não é novidade nenhuma entre os padres que se ocupam com seriedade de assuntos históricos; e em 1933 um ilustre jesuíta, o padre H. Heras, estudioso da história da companhia na Índia, pôde escrever, em resposta a críticas do historiador Bóies Penrose aos métodos de conversão empregados pelos S. J. no Oriente - críticas que constam da introdução escrita por Penrose a documentos do século XVII reunidos no livro Sea fights in the East Indies in the years 1602-1639 (Harvard University Press, 1931) - palavras que aqui soariam escandalosas: "O autor é ele próprio jesuíta, mas o primeiro a reconhecer os defeitos dos seus confrades, desde que bem sabe que embora todos eles se esforcem para adquirir santidade, nem todos são santos, e conseqüentemente podem errar e têm efetivamente errado em muitas ocasiões." Palavras que no original inglês se encontram à página 2 da introdução do padre Heras ao seu ensaio The conversion policy of the Jesuits in Índia (Bombaim, 1933). Fixam uma atitude que é hoje, entre nós, brasileiros e portugueses, a do padre Serafim Leite; mas ele quase sozinho entre os jesuítas brasileiros, portugueses e indianos; e, principalmente, entre os seus apologistas leigos menos letrados, constituídos numa espécie de seita que um malicioso já chamou de afro-brasileira, tal o seu simplismo intelectual. São extremistas que pretendem fazer do passado da companhia na América história sagrada, da qual só se possa e se deva dizer bem.

Euclides da Cunha, pelos seus reparos à ação dos jesuítas, não só na Europa como na América, é dos que os expoentes de semelhante extremismo - se lhe conhecessem bem a obra - colocariam entre os "inimigos da Igreja" e até do Cristo. Não porque faltasse a Euclides admiração pelo esforço dos jesuítas; mas porque essa admiração não foi absoluta. Quando a verdade parece ser que Cristo teria aprovado antes a política de contemporização com as culturas indígenas dos portugueses na América e dos próprios jesuítas no Oriente - política de que resultou, no continente americano, o Brasil vasto, pluralista e democrático de hoje - do que a de segregação, dos mesmos jesuítas - no Paraguai, nos Sete Povos e no Grão Pará - e da qual, evidentemente, não teria resultado o Brasil nosso conhecido . Quando muito alguns Brasis isolados, uns inimigos dos outros. Aqui entra o subjetivismo brasileirista na interpretação da história da companhia e da história do Brasil. Desse subjetivismo a obra de Euclides está impregnada.

Dentro desse subjetivismo de brasileiro, mas, ao mesmo tempo, com objetividade na análise particular de assuntos sociais, é que Euclides da Cunha dedicou tão grande atenção ao problema da terra e do homem do Brasil. Ora temendo a incapacidade do mestiço para progredir dentro dos padrões de progresso da nossa época e num meio físico como o do Brasil tropical - meio quase tão hostil ao mestiço e ao próprio indígena quanto ao branco pela "copiosa exuberância de vida vegetal".... "favorecida por um ambiente impróprio à existência humana"; ora otimista e desanuviado de "temores vãos", proclamando as virtudes - até contra possíveis tentativas de ocupação militar do país - dos "destemerosos sertanejos dos estados do Norte, que há vinte anos estão transfigurando a Amazônia" ("Contra os caucheiros", Contrastes e confrontos, p. 233) e apontando ao Brasil a necessidade da "redenção maravilhosa dos territórios", pelo emprego, por nós próprios e numa obra que se poderia chamar hoje de autocolonização, das técnicas desenvolvidas nos trópicos pelos povos imperialistas em "milagres" - a expressão é de Euclides - "da engenharia e da biologia industrial". ("Plano de uma cruzada", Contrastes e confrontos, p . 177)

Poderia ter acrescentado - da higiene, da administração, da saúde pública, da medicina social. Que tudo isso pode e deve ser mobilizado a favor da redenção dos territórios e dos povos considerados inferiores de modo absoluto quando sua inferioridade é afinal relativa. Redenção, no caso dos nossos territórios e das nossas populações indígenas e mestiças mais desprezadas, não só de largo sentido humano, cultural e social, mas brasileiro.

Este último sentido nunca faltou ao engenheiro social animado de ideal político que foi Euclides da Cunha. Para ele, a assistência àquelas populações e a redenção daqueles territórios não eram obras inspiradas numa vaga piedade humana, por um lado, nem numa mística de progresso material ou de tecnicismo puro, por outro. Quando se refere, por exemplo, à região entre o Madeira e o Javari como "remotíssimo trecho da Amazônia onde não vingou entrar o devotamento dos carmelitas" nem o que chama "a absorvente atividade meio evangelizadora, meio comercial dos jesuítas" ("Entre o Madeira e o Javari", Contrastes e confrontos, p. 234), trecho de território brasileiro agitado depois - nos últimos trinta anos do século XIX - por "vertiginoso progresso", é para salientar a necessidade da engenharia e da técnica serem utilizadas a favor da unidade brasileira, não deixando o Brasil zonas como aquela, remotas mas progressistas, isoladas do resto do país: acabariam destacando-se de nós. A preocupação brasileira. O ponto de vista brasileiro. O sentido brasileiro dos problemas de geografia e de sociologia. A mística da unidade brasileira a inundá-lo de uma ternura especial pelo indígena, pelo caboclo, pelo nativo, pelo Amazonas, pelo Acre, pelo Ceará, por Anchieta, por Diogo Antônio Feijó, por Floriano Peixoto, pela viação férrea, pelo telégrafo, pelo barão do Rio Branco. Brasileirismo que foi o principal "aspecto subjetivo" da obra de Euclides da Cunha: a marca mais forte de sua personalidade em relação com a cultura científica e técnica do seu tempo e com a academicamente humanista e aristotélica ou platônica do passado, pelo qual se alongou sua análise de estudioso de problemas sociais.

O seu socialismo não o desprendeu do Brasil. Não foi nunca, é certo, um nacionalista estreito. Mas não seguiu o conselho daquele espanhol, adepto do amor livre, que recomendava às novas gerações a adoção dessa e de outras liberdades mais ou menos sedutoras: mas pelas filhas dos outros; não pelas suas. Atitude muito de certos teóricos do socialismo, por um lado, e do cientificismo, sociológico e histórico, por outro: recomendam a objetividade absoluta aos outros - principalmente aos literatos dos países pequenos. Eles, porém, conservam-se terrivelmente subjetivistas com relação às suas poderosas pátrias ou semipátrias; ou aos seus sistemas ideológicos ou semi-ideológicos.




2. Revelador da realidade brasileira




De Euclides da Cunha se pode hoje afirmar que é um dos escritores brasileiros que maior influência vêm exercendo sobre a gente do seu país e maior atenção da parte de estrangeiros vêm atraindo para a cultura, em geral, e para as letras, em particular, de um ainda obscuro Brasil. Dois seriam hoje seus rivais, mais nessa espécie de influência do que nesse poder de sedução sobre estrangeiros: José de Alencar e Machado de Assis. Ambos menos carismáticos que o autor d'Os sertões. O que é certo também dos poetas nacionais que até hoje têm alcançado maior irradiação dentro e fora do Brasil: nenhum deles parece igualar o estranho ensaísta em carisma ou o exceder em influência.

É difícil de explicar a constância dessa influência de Euclides. Difícil de explicar a irradiação do carisma ou do quase-carisma que vem assinalando a presença de Euclides da Cunha tanto na vida como nas letras do nosso país. Pois se há escritor brasileiro de quem se possa dizer que é carismático, esse escritor é o autor d'Os sertões: artista difícil, como nenhum, de ser separado da sua condição de homem e da sua especialidade de técnico. Seu perfil anguloso de homem terrivelmente magro emerge há anos das ilustrações dos compêndios de literatura brasileira com alguma coisa de ascético e de profético a acentuar-lhe o prestígio e a marcar-lhe a sedução que suas letras e o drama da sua vida e a tragédia da sua morte vêm exercendo sobre a imaginação de já mais de duas gerações de brasileiros; e, ultimamente, até sobre estrangeiros voltados para literaturas exóticas do sabor ainda indefinido da brasileira.

Entretanto, é escritor difícil, este: ouriçado de adjetivos que antes o afastam que o aproximam do leitor moderno. Difícil e arrevesado. Discípulo, a seu modo, do Gracián que foi o ibero até hoje de maior influência sobre os pensadores germânicos, chega às vezes a um preciosismo que quase se confunde com o dos escritores além de cientificistas, pedantes: de um cientificismo pedante e irritante.

A verdade é que Euclides da Cunha escreveu perigosamente. Transpôs para a arte de escrever o viver perigosamente de que falava Nietzsche. Escreveu num estilo não só barroco - esplendidamente barroco - como perigosamente próximo do precioso, do pedante, do bombástico, do oratório, do retórico, do gongórico, sem afundar-se em nenhum desses perigos: deixando-o apenas tocar por eles; roçando por vezes pelos seus excessos; salvando-se como um bailarino perito em saltos mortais, de extremos de má eloqüência que o teriam levado à desgraça literária ou ao fracasso artístico. Que o teriam tornado outro Coelho Neto.

É um escritor cujo gosto, sem ser o convencionalmente bom, dos clássicos medidos e claros, nos dá a idéia de estar sempre em perigo: o perigo de tornar-se absolutamente mau. Mau segundo todos os padrões: os clássicos e os anticlássicos. Apenas esse risco nunca se realiza de todo. Nunca passa inteiramente de risco à desgraça literária. O autor d 'Os sertões nunca chega a ser catastrófico em seus colapsos de má eloqüência. Euclides da Cunha não nos desaponta em momento algum com uma só expressão de inconfundível mau gosto; ou de indiscutível preciosismo; ou de absoluto gongorismo. O que nele é freqüente é o gosto duvidoso, ambíguo e, por conseguinte, discutível.

Talvez por aí se explique a sedução ou o encanto com que ele vem há mais de meio século envolvendo tanto o leitor brasileiro de elite - que se inquieta com aqueles riscos mas se regozija com o quase constante triunfo do autor d 'Os sertões sobre os inimigos das suas virtudes literárias - como o leitor simplesmente atraído pelo que há de menos nobre nos jogos estilísticos do verbo às vezes quase execravelmente oratório do grande escritor; na sua eloqüência por vezes enfática; na sua adjetivação quase sempre crespa, estridente, mais aguda do que grave; nas suas mais repetidas procuras ou recorrências de efeitos teatralmente musicais.

Euclides foi escritor que escreveu quase sempre declamando: às vezes declamando tão alto que se tornou uma espécie de Hall Caine - o Hall Caine de quem dizia Oscar Wilde que falava tão alto que não se fazia entender direito: era apenas ouvido. Ouvido, Euclides vem sendo há mais de cinqüenta anos por muitos dos que o vêm lendo; entendido por outros tantos; admirado por quase todos. Pois é escritor dos que, mesmo quando não são plenamente entendidos, são agradáveis de ser ouvidos através do que escrevem. Escritores nascidos com boa voz. Nascidos escritores sonoros e que potentemente sonoros se consservam, mesmo quando suas mensagens perdem a potência intelectual.

Carlyle foi escritor desse feitio, e sua voz ainda hoje é ouvida com entusiasmo por muitos dos que o lêem. Macaulay, também. E, em língua francesa é não só o caso extremo de um Victor Hugo ou de um Chateaubriand como, sobretudo, o de um superior Jean-Jacques Rousseau, cujas próprias e pungentes confissões nos chegam aos olhos, ferindo-nos os ouvidos de modo tão saborosamente persuasivo que perdoamos sem esforço ao pecador os pecados que confessa em voz tão bela e em palavras tão lúcidas.

Euclides da Cunha não nos confessou em página alguma os próprios pecados: denuncia com voz às vezes bíblica e de profeta mais do Velho que do Novo Testamento - os crimes de alguns dos - brasileiros, seus contemporâneos; e opressões, a seu ver, sofridas de seus próprios patrícios por outros brasileiros, com os quais se identificou de algum modo o escritor um tanto quixotesco em seus rasgos empáticos. É que tendo se sentido vítima ou mártir, ele próprio, da elite política, social, econômica, literária, dominante na jovem República de 1889, fácil foi a Euclides identificar esse seu personalíssimo sentimento com o dos sertanejos da Bahia revoltados contra a civilização do litoral. Revolta justa, segundo ele. Tanto que para justificá-la chegou ao extremo de diminuir as virtudes dos militares da República.

E certo de terem sido os sertanejos de Canudos vítimas ou mártires de uma elite desorientada-a dos homens do litoral - é que Euclides da Cunha escreveu suas páginas mais vibrantes de revelação de um Brasil - o sertanejo - quase ignorado pelos próprios brasileiros: os da capital federal, os de São Paulo, os de Salvador, os do Recife, os de Porto Alegre, os de Belém.

Precisamente a propósito de Canudos, apareceu em 1958, no Rio de Janeiro, uma "análise reivindicatória da campanha de Canudos", intitulada A verdade sobre "Os sertões" que talvez deva ser considerada, em vários pontos, retificação essencial à parte não só convencionalmente histórica como sociologicamente interpretativa da obra máxima de Euclides. É um livro em que o sr. Dante de Melo considera a ação do Exército de Canudos de modo um tanto diferente do que levou Euclides da Cunha a escrever o seu grande livro-protesto.

E possível que o novo ensaio seja mais reivindicatório do que analítico. Nem por isto deixa de ser obra interessante e necessária: sobretudo nas páginas em que procura restituir aos seus exatos relevos fatos que a retórica vem desfigurando há anos. Pois não há dúvida de que o livro-protesto de Euclides concorreu para que a glorificação do sertanejo se consolidasse entre nós à custa de excessivo desapreço pelo homem do litoral: inclusive o simples, porém bravo, soldado do Exército. Talvez exagere o autor da "análise reivindicatória" ao escrever do Exército que foi "a entidade mais honesta e mais sacrificada na luta", isto é, na "guerra de Canudos". Mas parece certo ter o mau estadualismo, inaugurado no Brasil pela República de 1889, criado uma situação desfavorável à ação do Exército - que era uma ação federal, nacional, supra-estadual - e favorável a insurgentes cujo desenvolvimento em força quase-política se verificou em grande parte em conseqüência daquele estadualismo.

O sr. Vítor Nunes Leal - jurista brasileiro dedicado à análise de problemas nacionais de sociologia política - talvez devesse ter estendido seu estudo do fenômeno republicano do "coronelismo" ao episódio de Canudos onde Maciel, a despeito do seu monarquismo, parece ter sido uma das primeiras criações do estadualismo republicano. Estadualismo que foi tornando necessário aos governadores dos estados se apoiarem em "coronéis" ou equivalentes de "coronéis", fortes e privilegiados.

Sendo assim, o Exército teria sido de algum modo vítima, em Canudos, do próprio Exército: do Exército criador da República perigosamente estadualista de 1889. É um aspecto político do problema que não vem destacado naquele sugestivo livro sobre Canudos; e que está a exigir a atenção de um moderno homem de estudo que se especialize na análise do aspecto político do chamado "drama sertanejo". Drama em que parece ter explodido, além de um conflito entre culturas sub-regionais, semelhante ao do Pedra Bonita, um terrível desajustamento dentro do recém-inaugurado sistema de relações políticas dos novos estados com o poder central.

Desse aspecto de sociologia política do problema de Canudos não cuidou Euclides sem que, entretanto, se possa dizer do seu livro que pelos exageros e pelas omissões deixe de ter valor sociológico para apresentar-se como simples obra-prima de jornalismo literário. A verdade é que é livro complexo: notável como literatura e notável como ciência: ciência ecológica e ciência antropológica e até sociológica. Mas sobretudo obra de literatura. Obra de revelação.

Revelação, acentue-se bem; e não simples descrição. Só o escritor com alguma coisa de poético no seu modo de ser escritor é capaz de revelar de uma paisagem ou de uma época, de uma sociedade ou de uma personalidade complexa, os seus característicos profundos e os seus traços decisivos. Os puros cientistas não vão além da descrição - quantitativa, matemática, estática - quando muito completada pela explicação, de qualquer dessas realidades. Só um escritor daquele tipo mais alto, de que Gracián foi até hoje uma das expressões mais vigorosamente sutis - o vigor ibérico acrescentado de argúcia jesuítica - consegue, além de revelar, interpretar o complexo que qualquer dessas realidades contenha. Dentre os modernos, só um Hudson que escreva Green mansions. Ou um Joyce que se reconstitua em Stephen. Ou um Proust que escreva A la recherche du temps perdu. Ou um Mann que interprete o drama de um adolescente. Ou um Strachey que ressuscite a rainha Vitória. Ou um Ganivet que evoque Granada la bella. Escritores ao mesmo tempo líricos e analíticos: combinação raríssima em qualquer língua ou em qualquer literatura.

Vários foram os brasileiros da época de Euclides da Cunha que descreveram e até explicaram, alguns já se servindo de números e estatísticas, aspectos importantes da realidade brasileira em obras de considerável valor científico: Couto de Magalhães, Nina Rodrigues, Sílvio Romero, José Veríssimo, o visconde de Taunay, Teodoro Sampaio, o barão do Rio Branco, Clóvis Beviláqua, Martins Júnior. O que destacou de modo tão vigoroso a literatura de Euclides da classes outros brasileiros, homens de estudo, sobre temas rasgadamente nacionais - e até da própria literatura semi-sociológica de .Joaquim Nabuco, de Eduardo Prado, de Oliveira Lima e de Graça Aranha: quase-sociólogos, notáveis não só pela sua quase-sociologia como pelas suas virtudes literárias de expressão - foi o caráter de obras não apenas descritivas, ou somente evocativas, mas de revelação e de interpretação do Brasil, dos ensaios que escreveu o autor de Os sertões. Não só Os sertões como Contrastes e confrontos, À margem da história. Ensaios de quem se aproximou de temas brasileiros com espírito científico e com preparação técnica: a própria e a de amigos que foram eminências pardas do escritor absorvente, em relação com alguns aspectos mais turvos daqueles mesmos temas. Mas não só com esse espírito nem apenas com essa preparação: também com o gênio capaz de revelar dos assuntos analisados seus traços mais significativos. - Que nessa obra de revelação é que se define o autêntico, o genuíno, o grande escritor; nela é que se afirma sua superioridade sobre os puros especialistas, por mais perfeitos na sua ciência; ou sobre os puros técnicos, por mais exaustivos, no seu saber apenas empírico do assunto versado.

Vários são hoje, na Espanha, os filólogos especializados magistralmente no conhecimento técnico e no saber científico da língua espanhola. Vários os arabistas espanhóis Vários os orientalistas. Mas a um tempo especialista no seu saber de filólogo e generalista no seu domínio sobre assuntos ibéricos de cultura, só um Américo Castro nos vem revelando dessa língua, nem sempre latina no seu espírito, formas de expressão em que a cultura árabe e a cultura israelita se juntam hoje quase em segredo, como se ainda se escondessem mourisca e israelitamente dos dominicanos da Inquisição para animar a mais moderna cultura hispânica de possibilidades, únicas em cultura européia, de comunicação com algumas das emergentes ou ressurgentes culturas extra-européias, em rápida e surpreendente ascensão no mundo dos nossos dias: um mundo de tal modo diverso do de há um século - o de exclusivo e imperial domínio da civilização européia sobre as demais civilizações - que e quase uma negação do seu antecessor.

Foi dessa espécie de obra de revelação que Euclides da Cunha - também especialista no seu saber de engenheiro aplicado ao estudo ou ao conhecimento de problemas brasileiros mas generalista no seu domínio sobre assuntos nacionais de cultura - realizou de modo genial. Revelação dos sertões aos brasileiros do litoral e revelação do Brasil a estrangeiros por este ou por aquele motivo curiosos a respeito do nosso país, e nem sempre satisfeitos com as respostas, à sua curiosidade, dos geólogos, dos geógrafos, dos economistas, dos historiadores, dos sociólogos, dos juristas; ou das estatísticas, dos mapas, dos diagramas.

Daí o triunfo alcançado em meios cultos do estrangeiro pelo livro revelador do Brasil que Euclides da Cunha escreveu, a propósito do drama de Canudos, como quem se definisse escritor mais de dentro para fora do que de fora para dentro do assunto versado no seu ensaio. Do assunto - um assunto teluricamente brasileiro - ele deixou de tal modo se impregnar, não apenas por simpatia, mas, por empatia profunda, que conseguiu comunicar essa sua identificação empática com o seu tema, ao próprio leitor estrangeiro. Pelo menos ao leitor em língua inglesa e ao leitor em língua espanhola d ' Os sertões. São línguas em que não há exagero em dizer-se que o leitor estrangeiro, a despeito do cientificismo por vezes arrevesado de livro tão diferente do comum dos livros, vem tomando conhecimento mais íntimo de uma literatura especificamente brasileira, que através de quantos outros livros de brasileiros, sobre temas nacionais, têm sido publicados em idiomas europeus: os de José de Alencar, os de Joaquim Nabuco, os de Machado de Assis, os de Rui Barbosa, os do visconde de Taunay, os de Graça Aranha, os de Mário de Andrade, os de José Lins do Rego, os de Jorge Amado, os de Érico Veríssimo. E a razão parece a alguns de nós ser principalmente esta: é um livro, a obra-prima de Euclides, em que o autor brasileiro não temeu ofender o leitor europeu com o seu tropicalismo; ou picá-lo com o seu brasileirismo. Ao contrário: ostentou-o. Exibiu-o quase escandalosamente. Não se fingiu de inglês, como, de certo modo, o apolíneo Machado de Assis; nem de francês, como até certo ponto o igualmente apolíneo Joaquim Nabuco, que até a um francês de longa experiência literária de Faguet enganou com as sutilezas de Pensées détachées.

Euclides da Cunha esplende de tropicalismo; arde de brasileirismo. É dionisíaco e até exuberante no seu modo de interpretar-se e de interpretar o Brasil aos olhos de outros brasileiros e aos olhos de estrangeiros voltados para o Brasil.

Compreende-se que, assim dionisíaco, tenha escandalizado não só puristas como um apolíneo da cabeça aos pés como foi, se não na mocidade, na idade provecta, Joaquim Nabuco, a quem os livros de Euclides teriam dado a impressão de escritos rudemente, agrestemente, com um cipó. Mas compreende-se, por outro lado, que essa literatura agrestemente brasileira tenha dado a europeus menos convencionais que tais quase-europeus ou subeuropeus nos seus gostos literários, a aventura de uma nova conquista de paladar: aventura dificilmente encontrada pelos mesmos europeus nos romances brasileiros de um Machado ou de um Graça Aranha ou de um visconde de Taunay. Romances nos quais vários desses europeus, em vez de novos sabores, têm candidamente confessado a amigos brasileiros haver encontrado apenas sabores já seus velhos conhecidos, com um ou outro salpico de tempero exótico. A verdade é que o tempero brasileiro é às vezes mais forte do que se pensa em alguns dos romances e, sobretudo, nos melhores contos de Machado. Mas são de uma força de tal modo sutil que às vezes desaparecem quase de todo nas traduções ao francês e ao inglês daquelas obras-primas brasileiras. Destino que dificilmente podem ter as cruezas tropicais e os ardores brasileiros de Euclides - do seu verbo eloqüente e das suas técnicas expressionistas de arte literária. São cruezas que se projetam nas próprias traduções, provocando arrepios e até repulsas da parte do europeu mais cartesiano, ou mais renaniano; mas acabando por se imporem ao paladar literário desses sofisticados como aventuras que lhes trouxessem novas sensações do mundo e novas visões do homem, através de uma arte literária diferente da européia; com outro ritmo; com outras sugestões de doçura dentro de outras sugestões de violência: as contraditórias sugestões de doçura e de violência que Euclides soube estilizar, encontrando-as tanto na natureza dos ambientes como no homem das terras quentes e tropicais mais do seu gosto: as regiões amazônicas, e as áridas ou sertanejas do Brasil.

Quem lê os ensaios de Euclides da Cunha não precisa buscar um autor que se escondesse naquela niebla de ausencia de que fala, em página recente, um crítico de língua espanhola a propósito de certo escritor sul-americano do tipo do brasileiro Machado. Euclides pertence ao número de autores que não se deixam buscar ou procurar pelo leitor: vêm ao seu encontro. Apresentam-se. Exibem-se. Nenhum escritor de língua portuguesa mais presente na sua literatura do que ele. Nenhum mais ostensivo na sua presença. Seu próprio brasileirismo, por vezes enfático, talvez fosse uma expressão do que o autor julgava ser, em si mesmo, presença ameríndia: tapuia. Admitia que fosse um "tapuio" modificado por outras presenças - pela "grega" e pela "celta". Mas a consciência de ser homem de sangue ameríndio parece ter-se tornado nele outra consciência: a de dever ser um escritor com alguma coisa de não-europeu e até de antieuropeu em sua visão do ambiente nativo e em sua expressão ou em sua interpretação desse ambiente. Não só escritor: homem público. Daí seu nacionalismo ou, antes, brasileirismo: um brasileirismo difícil de ser separado do seu indigenismo. Era nos "admiráveis caboclos do Norte", por exemplo, que ele via o futuro da Amazônia brasileira: caboclos capazes de sobrepujarem "pelo número, pela robustez, pelo melhor equilíbrio orgânico da aclimação e pelo garbo no se afoitarem com os perigos" quantos estrangeiros tentassem se estabelecer em terras de seringais. O que era preciso era que o "engenheiro" - Euclides era engenheiro, além de "caboclo" - amparasse, sob o comando de um governo consciente da sua missão, aqueles bravos, na sua obra de integração da Amazônia no conjunto nacional brasileiro; e os amparasse pondo-os em intimidade permanente com o resto do país "através de comunicações fáceis": além de estradas de ferro, "a aliança das idéias, de pronto transmitidas e traçadas na inervação vibrante dos telégrafos". É a mensagem sociológica que nos transmite o seu ensaio "Entre o Madeira e o Javari", incluído no livro Contrastes e confrontos (Porto, 1913).

O Euclides da Cunha preocupado com o futuro brasileiro da Amazônia era o mesmo Euclides da Cunha em quem o drama de Canudos despertara o mais intenso dos brasileirismos, reclamando dele um esforço construtivamente nacionalista em que ao "espírito caboclo" juntou-se a formação de engenheiro e a preocupação do sociólogo. Ou do ecologista social. Esses três aspectos da personalidade do autor d'Os sertões foram os aspectos básicos de sua ação: sua literatura está quase toda animada por estas três presenças. Ele nunca se contentou em ser nem beletrista nem subeuropeu: o escritor, em Euclides, incluiu sempre o engenheiro e implicou sempre viva e até vibrante solidariedade do autor com o indígena do Brasil. Com o caboclo. Com o "tapuio": um "tapuio" que dentro dele se conciliasse com o "celta" e com o "grego".

Compreende-se assim que o tenham entusiasmado aquelas páginas do primeiro Roosevelt nas quais o vigoroso político, misto, segundo Euclides, de rough rider e de quaker, fez o elogio das civilizações autênticas; e combateu as de empréstimo:

Essa espécie de regimen colonial do espírito que transforma o filho de um país num emigrante virtual, vivendo, estéril. no ambiente fictício de uma civilização de empréstimo.

Para nós, brasileiros - pensava Euclides - é que pareciam feitas aquelas palavras porque entre nós é que se faz mister repetir longamente e monotonamente, mesmo, que mais vale ser um original do que uma cópia... e que o brasileiro de primeira mão, simplesmente brasileiro, malgrado a modéstia do título, vale cinqüenta vezes mais do que ser a cópia de segunda classe, ou servil oleografia, de um francês ou de um inglês.

E outra de suas mensagens sociológicas que nos transmite aquele seu livro de pequenos mas vibrantes ensaios.

Nesse seu elogio ao primeiro Roosevelt, Euclides da Cunha como que resumiu o seu credo de brasileiro, inseparável do seu credo de escritor: o que ele desejava para o seu país era um Brasil corajoso de suas originalidades caboclas, mesmo modestas, que se realizassem mercê de modernas técnicas de engenharia que o Estado pusesse a serviço do desenvolvimento nacional; o que ele desejava para si próprio, Euclides da Cunha, era a coragem de desenvolver-se, em escritor diferente dos europeus: consciente de sua condição de "caboclo" - embora sem desprender-se da de "celta" e da de "grego"; capaz de juntar para proveito do Brasil, à sua literatura, sua engenharia; observador do Brasil, através do que fosse "empírico" no seu conhecimento sociológico da realidade brasileira, como "os arquitetos" das "fórmulas empíricas da resistência dos materiais". Assim se conformaria ele, por um lado, com os modernos triunfos da ciência empírica; por outro, com as melhores tradições, senão literárias, dinâmicas, da gente do seu e nosso país, certo como lhe parecia que "os nossos melhores estadistas, guerreiros, pensadores e dominadores da terra" os que "engenharam" - note-se o verbo caracteristicamente, narcisistamente, euclidiano - "as melhores leis e as cumpriram", "os homens de energia ativa e de coração que definiram com mais brilho a nossa robustez e o nosso espírito - todos sentiram, pensaram e agiram principalmente como brasileiros". É o que se lê num dos mais expressivos dos seus pequenos ensaios reunidos em Contrastes e confrontos: "O ideal americano" - apologia de quantos brasileiros antigos souberam engenhar brasileiramente o Brasil.

Assim agiram, sentiram e pensaram os próprios construtores daquela civilização patriarcal agrária e escravocrática que deu ao nosso país valores e originalidades que Euclides da Cunha - entusiasta sobretudo de bandeirantes e sertanejos - nunca demorou-se em apreciar ou admirar: viu-as apenas de soslaio. Noutro dos seus ensaios - "Entre as ruínas" - fixou a tristeza das ruínas dessa civilização, antes sedentária que andeja, sem muita simpatia pela "arquitetura terrivelmente chata" das casas-grandes de fazendas e dos engenhos antigos. Mas de qualquer modo, reconhecendo:




...malgrado o deprimido das linhas, essas vivendas quadrangulares e amplas, sobranceando as senzalas abatidas, os moinhos estruídos, os casebres de agregados, e alteando de chapa para a estrada os altos muramentos de pedra, que lhes sustentam os planos unidos dos terrenos, conservam o antigo aspecto senhoril.




Nenhuma palavra de lamentação para o desaparecimento da gente senhoril e da população servil que animaram solares; e que animando-as, criaram, mais que os bandeirantes, um Brasil autêntico em profundidade. Só o registro da decadência do agregado:

O caipira desfibrado, sem o desempeno dos titãs bronzeados, que lhe formam a linhagem obscura e heróica... uma ruína maior por cima daquela ruinaria da terra.

Só o registro da decadência do caboclo das fazendas: simples comparsa de um drama que teve por personagens decisivos os senhores brancos e os escravos de cor. Por onde se confirma - um exemplo dentre vários - que foi constante, em Euclides, o afã de idealizar e romantizar o indígena; o ameríndio; o caboclo - isto é, o brasileiro mais próximo do escritor; mais seu irmão; mais do seu sangue, e mais da sua terra. Do mesmo modo que foi constante nele o critério de caracterizar paisagens, reduzindo-as não só a expressões de "resistência de materiais" - um critério de engenheiro - como a manifestações de violência do homem contra a natureza: um critério dc ecologista. Ecologista, engenheiro e caboclo repita-se que são presenças constantes no escritor Euclides da Cunha: nos seus temas; nas suas visões de terras e de populações brasileiras; no seu estilo. No seu famoso estilo cuja originalidade parece decorrer, em grande parte, da fusão desses três homens num só escritor: fusão que pela primeira vez aconteceu nas letras brasileiras realizada pelo autor d'Os sertões.

Não que antes dele não tivesse havido no Brasil quem procurasse pôr a engenharia a serviço do desenvolvimento nacional: foi no mais que se empenharam engenheiros como Rohan, Rebouças, Monteiro Tourinho, Pimenta Bueno, Buarque de Macedo, Bicalho, Pereira Passos, os dois Mamede. Nem escritor animado do afã de valorizar o indígena: José Bonifácio - foi o primeiro de uma série de indigenistas notáveis -, José de Alencar, Gonçalves Dias, Couto de Magalhães. Nem ecologista preocupado em harmonizar o brasileiro com a natureza do interior do Brasil: a Alexandre Rodrigues Ferreira se sucederam Azevedo Pimentel, Luís Cruls, Teodoro Sampaio. Eram, porém, afãs separados e da parte de homens de vocações diferentes. Em Euclides da Cunha esses afãs se uniram pela primeira vez dentro de um escritor de forte gênio verbal; e que foi, ao mesmo tempo, indigenista, engenheirista e ecologista nas suas principais constantes de sentimento, de pensamento e de ação. Dessa fusão resultou não só uma obra singular nas letras brasileiras como um estilo também novo, em língua portuguesa, por ter se desenvolvido como expressão de um novo tipo de personalidade criadora: uma personalidade complexa, na qual ao gosto pelos temas telúricos se juntava o entusiasmo pelas soluções técnicas as mais arrojadamente modernas.

De modo que é uma presença, a de Euclides da Cunha na vida e nas letras brasileiras, que inclui - repita-se - a presença de três homens diversos, mas, no seu caso, complementares, fundidos ou reunidos num só e grande escritor. Daí ser uma influência, a sua, que, complexa como é, talvez exceda em importância, em extensão e mesmo em profundidade a de qualquer outro intelectual brasileiro - sem nos deslembrarmos nem de José de Alencar nem de Machado de Assis; nem de Rui Barbosa nem de Joaquim Nabuco; nem de Gonçalves Dias nem de Castro Alves. Nenhum deles parece vir alcançando tantas zonas de sensibilidade ou de receptividade a influência de um escritor.

Isto sem entrarmos em avaliações ou comparações de mérito especificamente literário à base da influência de cada um: considerando-se o caso de Euclides da Cunha o caso complexo que foi e continua a ser dentro da cultura e da vida - e não apenas das belas-letras - nacionais. Só considerado assim - nessa sua complexidade - pode Euclides da Cunha ser estimado ou avaliado como influência, ainda hoje viva, entre seus compatriotas.

Influência nem sempre saudável. Ao exemplo do seu estilo se deve muito arrevesado de frase, na língua portuguesa do Brasil, em que, da imitação de um ritmo, de uma pontuação, de um vocabulário extremamente pessoais, resultou por algum tempo muita caricatura; e caricatura grotesca.

Por outro lado Euclides foi dos grandes escritores brasileiros um dos que mais deixaram à mocidade do seu país o exemplo de que ser um escritor homem de estudo metódico e homem de trabalho sistemático não significa escassear-lhe o talento ou faltar-lhe o gênio. Neste particular ele pertenceu ao número dos Rui Barbosa, dos Joaquim Nabuco, dos Machado de Assis. Em vez de ter valorizado a tradição do escritor boêmio e improvisador, valorizou a outra: a do escritor, homem de estudo. A do escritor, homem de trabalho. Com o que prestou um serviço imenso à cultura nacional, vítima, ainda hoje, do mito que associa ao escritor de gênio as boêmias de café ou as bebedeiras nas cervejarias.

Euclides - recordou uma vez do autor d'Os sertões o cronista João Luso, que o conhecia de perto - "escrevia com grande lentidão". Não só com "grande lentidão": também à base de conhecimento objetivo e de estudo honesto do tema que versasse. Era antes scholar que diletante: ele próprio comparou-se uma vez - informa João Luso - com certos pássaros que para despedir o vôo precisam de trepar primeiro a um arbusto. Abandonados no solo raso e nu, de nada lhes servem as asas; e tem que ir por aí afora à procura do seu arbusto.

O seu arbusto, dizia Euclides que era "o Fato".

Foi outro exemplo que Euclides da Cunha deu aos seus compatriotas mais jovens: o de procurarem no conhecimento quanto possível vivo, direto, dos fatos brasileiros, matéria para a criação ou expressão literária. Estimulou assim o desenvolvimento, em nosso país, de uma literatura firmada na observação, no estudo, na análise de fatos caracteristicamente nacionais: os sertanejos e os amazônicos, principalmente. Por conseguinte, regionais. Dessa literatura se pode dizer que vem sendo ecológica ou sociológica nas suas tendências; mas salientando-se da de Euclides que, por ter sido ecológica ou sociológica e até nutrida da ciência ou da técnica do engenheiro de campo, que nunca deixou de ser arte; não deixou de modo algum de ser literatura. É que o escritor dirigiu, em Euclides da Cunha, a colheita, a seleção e a interpretação do material além de ecológico, sociológico, por ele utilizado como combustível de suas criações literárias. E o escritor em Euclides não foi um publicista apenas - o caso de Alberto Torres. Foi um artista. Foi um poeta. Foi escritor dos grandes: dos animados do gênio da revelação. Portanto escritor daquele tipo do qual escreve um crítico dos nossos dias, o professor Leo Lowenthal, que é quem retrata da realidade what is more real than reality itself. Só o escritor - acrescenta o professor Lowenthal no seu Literature and the image of man - sugestivo ensaio de sociologia da literatura - ou, antes, só a literatura, presents the whole man in depth... Foi o que conseguiu Euclides da Cunha: traçar do sertanejo um retrato em profundidade em que a figura do homem se integra de tal modo na paisagem que a ninguém é possível destacar o homem assim retratado do seu meio absorventemente materno. Só em literatura acontecem tais revelações e tais interpretações de paisagens e de homens porque só a literatura - voltemos a este ponto - é revelação. Só o escritor que seja também poeta no lato sentido alemão da palavra revela dos personagens, das paisagens das sociedades que a sua arte ressuscita ou surpreende ainda em movimento, as intimidades mais características. Só o grande escritor: nunca o pequeno nem sequer o médio. Só o grande escritor: nunca o cientista que sendo apenas cientista, escreva claro e correto; nem o especialista incapaz de transpor sua especialidade, não para invadir especialidades alheias, mas para dominar os assuntos que versa, como todos inter-relacionados. Daí, na caracterização da paisagem dos sertões, Euclides da Cunha ter realizado - mesmo resvalando em pequenos erros técnicos - uma revelação do caráter dessa paisagem que nem o geólogo Orville Derby nem o geógrafo Teodoro Sampaio - suas principais eminências pardas - teriam jamais conseguido sequer esboçar; menos, ainda, realizar. E ter levantado um perfil antropológico do sertanejo que nem três Ninas Rodrigues reunidos teriam sido capazes de levantar. Euclides da Cunha nunca nos põe diante de simples e perfeitas fotografias nem de sertanejos e de sertões; nem de seringueiros e de seringais - fotografias reunidas para que ele apenas as colorisse a mão; e assim coloridas, mas sem retoques nos seus traços, constituíssem o material científico de algum vasto gabinete de identificação que, em vez de policial, fosse sociológico. Mesmo porque seu forte nunca foi procurar acentuar as cores dos homens e das paisagens; e sim as suas formas. Foram precisamente os traços dos seus retratados que ele retocou e alterou, para neles acentuar características a seu ver essenciais. Nos seus ensaios, ele nos põe diante de retratos de homens e de interpretações de paisagens traçados por uma técnica singularmente sua em que ao impressionismo se acrescenta por vezes um expressionismo arrojado e personalíssimo: a intensificação na realidade do que nela o escritor encontrou de mais real. Foi intensificando e até exagerando na realidade o que dela lhe surgisse aos olhos e à sensibilidade como mais real que a realidade, que ele nos deixou, além de um retrato, hoje clássico, de sertanejo, vários retratos menores, mas igualmente significativos, de homens-símbolos. Não pode dizer-se conhecedor do Brasil quem ignore esses retratos e essas interpretações; e conheça apenas fotografias sociológicas ou geográficas dos homens e das paisagens que Euclides da Cunha retratou através daquele seu método menos impressionista que expressionista.

Destaque-se ainda de Euclides da Cunha que não se limitou a retratar indivíduos de uma só classe ou de um só grupo social mas de vários, embora seu brasileiro-ideal fosse evidentemente o sertanejo completado pelo seringueiro; e este, um meio-termo entre o burguês e o proletário, não podendo servir para símbolo de reivindicações de uma classe contra outra. Nem foi um drama de conflito de classes nem sequer de raças o que se verificou em Canudos, embora do verdadeiro caráter de luta entre soldados e jagunços o autor d'Os sertões não tenha se apercebido de todo: o caráter de um choque entre culturas. Daí resvalar por vezes, tanto quanto seu contemporâneo Sílvio Romero e, talvez, por influência do também seu contemporâneo Nina Rodrigues, em incertezas quanto à exata situação biológica do mestiço; o qual, biologicamente inferior, seria também sociologicamente incapaz de concorrer para o progresso brasileiro com que sonhava a engenharia de Euclides. É evidente que sua descrença no mestiço por preconceito cientificista era uma descrença que alcançava principalmente o mulato e o cafuzo; e não o ameríndio que tivesse apenas o seu toque de "celta" ou de "grego" e se conformasse, aos olhos de Euclides, à sua imagem talvez um tanto romântica do sertanejo ou do nortista desbravador da Amazônia. Mas não há dúvida de que, como Nina Rodrigues, e como, em certas fases de sua vida, o contraditório Sílvio Romero, Euclides padeceu daqueles preconceitos cientificistas contra mulatos e cafuzos, concorrendo, talvez, para o "arianismo" dos Oliveiras Vianas: seus sucessores imediatos nos estudos de homens e populações brasileiras. Resvalaram esses Oliveiras Vianas naquele preconceito, ao contrário dos Roquete Pinto que, entusiastas de Euclides e do seu sertanismo, retificaram-no sem demora neste particular, do ponto de vista antropofísico; e o fizeram, estando ainda quente a presença do autor d 'Os sertões nas letras nacionais. Do ponto de vista antropossocial ou antropocultural é que a retificação não só ao autor d 'Os sertões como a Nina Rodrigues só se faria, de modo decisivo, mais de um quarto de século depois da morte de Euclides da Cunha. Mas isto é outra história, como diria o inglês embora história não de todo estranha à avaliação que hoje se faça da influência do grande escritor não só sobre as letras como sobre os estudos antropológicos e sociológicos no seu país. Foram estudos que sua presença marcou de modo tão notável como marcou as letras nacionais: o ensaísmo literário que, sob a reorientação que ele deu a esse gênero de expressão ganhou novas perspectivas em língua portuguesa. Tão novas que talvez não haja exagero em falar-se de um tipo euclidiano de ensaio.

Diz-se da ciência que é a analítica teórica e impessoal, enquanto a arte é sintética, prática e pessoal, além de orgânica. Na obra de Euclides da Cunha predominaram as virtudes artísticas sobre as científicas. E sua própria maneira de ser cientista foi uma maneira hispânica ou ibérica, admitindo a presença do analista na obra de análise: maneira que Nietzsche parece ter aprendido dos espanhóis - sobretudo de Gracián - ao comunicar aos seus estudos filológicos alguma coisa de psicológico que terminou sendo alguma coisa de poético. Não erraria, quem dissesse do autor d 'Os sertões que foi, à sombra dessa tradição, mas excedendo-a, uma antecipação do moderno humanista científico: tipo de ensaísta que na língua inglesa vem se afirmando de Havelok Ellis a Julian Huxley, de Lawrence da Arábia a Bertrand Russell, de William James a Herbert Read. Esse humanismo científico ele o aplicou principalmente a temas brasileiros: à análise de homens ou de populações regionais e nacionais à qual acrescentou não só a revelação de intimidades características desses homens e dessas populações como a glorificação de valores por eles, a seu ver, encarnados. Nessa glorificação se expandiu seu pendor para o que fosse prático, orgânico e até pessoal nos mesmos temas, de preferência ao que neles se prestasse apenas a análises impessoais e a generalidades abstratas.

Há quem pense de Euclides da Cunha que, "embora nascido no estado do Rio", ficou "intimamente ligado à literatura nordestina, cuja civilização particularista estudou em suas páginas sensacionais". É a opinião do professor Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde) à página 59 do seu Quadro sintético da literatura brasileira (Rio, 1956). A propósito do que acrescenta o eminente crítico:

A região nordestina no Brasil é tão típica, em seus costumes, como a região amazônica, a mineira, a gaúcha ou a do litoral central.

E lembra já haver outro crítico, o hoje acadêmico Viana Moog, "também romancista e ensaísta de valor", proposto uma "divisão da literatura brasileira baseada nessas idiossincrasias regionais". Com essas digressões - precedidas pelo reconhecimento de um "regionalismo" mineiro (Afonso Arinos) a que se teria juntado um "regionalismo" paulista (Valdomiro Silveira) sem que ao ilustre historiador do Quadro sintético tenha ocorrido a necessidade de desses regionalismos e do gaúcho e do mero "pernambucanismo" de Joaquim Nabuco ou do superficial "sertanismo" de Catulo da Paixão Cearense distinguir-se o muito mais complexo regionalismo em 1924 nascido no Recife - o professor Alceu Amoroso Lima enche a meia página em que deveria ter fixado seu julgamento sintético da obra de Euclides da Cunha. O que é pena pois nesse julgamento sintético de Euclides pelo mestre atual mais admirado e mais respeitado da crítica literária no nosso país teria se resumido a moderna atitude de toda uma elite intelectual - a dos críticos literários nacionais - com relação ao autor d 'Os sertões. Não se compreende que muito mais do que Euclides tenha merecido do professor Amoroso Lima, isto é, dos seus julgamentos sintéticos, Rui Barbosa, um tanto arbitrariamente apresentado pelo crítico-historiador como "porventura a mais internacional das nossas grandes figuras literárias, no sentido amplo do termo" (p. 47); primazia que evidentemente cabe antes a Euclides ou a Machado que a Rui. É uma ilusão, essa, da parte de numerosos brasileiros, de ser Rui Barbosa - que tanto significou, na verdade, para nós, seus compatriotas, e ainda significa, como invulgar jurista-político em quem às virtudes acadêmicas de grande erudito nessas matérias, nas letras clássicas e na filologia, se juntou o carisma de bravo homem de ação e de incansável doutrinador de liberalismo, por um lado e por outro, de casticismo - um brasileiro significativo para os meios cultos estrangeiros por qualquer motivo interessados no Brasil. É uma ilusão acreditar-se na importância da repercussão, no estrangeiro, de seus triunfos político-jurídicos e oratórios na Haia: muito maior foi, na mesma época, a repercussão das teses em prol do mestiço brasileiro defendidas em Londres, em congresso internacional de cientistas, pelo professor J. B. de Lacerda. É uma ilusão imaginar-se Rui sob o aspecto de "figura literária" brasileira que tenha impressionado ou impressione ou seduza hoje, estrangeiros, por suas virtudes literárias. Ao afirmá-lo, o crítico e professor Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde) resvala num mito que por sua condição mesma de crítico deveria ser o primeiro a retificar. Pois semelhante repercussão de Rui no estrangeiro não existe senão em meios europeus ou americanos influenciados diretamente pelo culto brasileiro ao mesmo Rui.

Para Euclides da Cunha tem se voltado, da parte de estrangeiros interessados em literatura, ou nos trópicos, ou em gentes exóticas, em geral - e não apenas no Brasil - senão sempre uma admiração, uma curiosidade que talvez se explique pelo fato de ser a literatura do autor d'Os sertões, mais do que a de Rui Barbosa ou do que a de Joaquim Nabuco ou mesmo a de Machado de Assis, diferente das produções européias; tocada - ainda mais que a de José de Alencar: seu predecessor mais importante neste particular - por alguma coisa de agreste ou de tapuio em sua arte e em seus motivos combinados. Por conseguinte, uma literatura de sabor um tanto novo para o estrangeiro, a quem o próprio Machado de Assis desaponta quando seu humour é o subinglês dos seus romances e das suas crônicas - humour tão surpreendente para o paladar brasileiro - em vez de ser a graça já sutilmente carioca que caracteriza, mais do que os seus romances e as suas crônicas, os seus contos. E justamente pelos contos é que Machado de Assis vem competindo com Euclides da Cunha na sedução que os dois, muito mais do que Rui Barbosa, vêm exercendo sobre estrangeiros.

Em resumo: se é exato o que aqui se diz ou se sugere, compreende-se que à obra de Euclides da Cunha pareça destinada a missão de abrir para europeus e para outros estrangeiros caminhos à compreensão do Brasil através da literatura brasileira, que nenhum outro escritor já clássico do nosso país vem conseguindo sequer desbravar. Pareceu que Alencar o faria, completado pela propaganda que dele fez com não pequeno entusiasmo um inglês do prestígio de Burton. Mas a repercussão de Alencar na língua inglesa enlanguesceu cedo. Difícil tem sido igualmente aos brasileiros convencerem os estrangeiros da importância literária de Machado: a importância que nós, com inteira razão, lhe atribuímos, à base do que Machado trouxe para a literatura nacional, da literatura inglesa, acrescentando a essa difícil importação alguma coisa de discreta e sutilmente sua, quase impossível de ser transmitida aos estranhos através de traduções. A eterna história das conchas que retiradas da praia perdem quase todo o encanto, tornando-se tristes e inexpressivas.

De Euclides, se sabe que em certas línguas, como a sueca, vem sendo um fracasso absoluto. Na língua inglesa e na espanhola, porém, já atravessou a prova de sobreviver às primeiras edições. Vem se afirmando, mais que qualquer daqueles dois e do que Taunay ou Graça Aranha, escritor polivalente. Isto é, escritor quase tão fascinante dos leitores sob a forma de escritor traduzido - bem traduzido, é claro - quanto sob a forma de escritor na língua materna.